Médicos de Família: a água que falta e se desbarata no SNS

Os médicos de família trabalham, em média, 6,3h/semana acima do seu horário (+16%), de modo não remunerado, porque dentro dele não conseguem dar resposta às necessidades das suas listas de utentes.

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A gestão dos recursos hídricos é uma fonte de paradoxos em Portugal: tanto são notícia a seca, como as perdas de água da rede pública, que atingem, em alguns municípios, 50% da disponível para consumo humano.

Esta é uma boa metáfora para descrever o que acontece com o trabalho dos médicos de Família (MF) portugueses. Sendo “água” vital aos sistemas de saúde, são também um recurso escasso cujo tempo clínico é desperdiçado de muitos modos dentro do SNS.

O seu perfil de competências clínicas – altamente diferenciadas, adquiridas ao longo de uma formação especializada exigente de quatro anos, treinadas para prestar na comunidade, integrados em equipas com as restantes profissões que os compõem, cuidados de saúde primários (CSP) à população geral em todas as fases do seu ciclo de vida – provou associar-se, nos sistemas de saúde que o potenciam, a mais e melhores anos de vida, com desempenhos economicamente mais eficientes por comparação com os baseados em cuidados centrados na doença e na medicina hospitalar. Porém, esbarra demasiadas vezes na colonização do seu tempo clínico com tarefas de muito baixo valor, que poderiam e deveriam ser eliminadas, simplificadas ou executadas de modo automático por sistemas de informação orientados para serem um adjuvante e não, como hoje acontece, um empecilho ao trabalho destes profissionais.

A anterior Direcção Executiva do SNS (DE-SNS) encetou tímidas tentativas de simplificação de actos despiciendos no dia-a-dia dos MF. Saudando-se esses curtos avanços, requer-se, no entanto, coragem a quem se segue para enfrentar, de uma vez por todas, as ineficiências em que os CSP estão ainda, e de modo muito profundo, mergulhados, e que, uma vez eliminadas, gerarão seguramente valor em saúde, ao libertarem tempo significativo dos MF para lhes permitir ocuparem-se com o que são exímios a fazer: medicina preventiva eficiente e de proximidade, gestão da doença crónica e da doença aguda manejáveis fora dos hospitais.

No último mês, no 41.º Encontro Nacional de Medicina Geral e Familiar, foram apresentados os resultados de um estudo nacional que pretendeu saber que quantidade desta água, que é o tempo do MF, se perde em ineficiências. Não podemos dizer que os resultados tenham sido surpreendentes para quem conhece a realidade das unidades de saúde do SNS: os MF trabalham, em média, 6,3 horas semanais acima do seu horário oficial, de modo não reconhecido nem remunerado, porque dentro dele não conseguem dar resposta às necessidades das suas pesadas listas de utentes. É um acréscimo de 16% do tempo contratual a que estão obrigados.

Desse tempo extra “informal”, 4,6h (cerca de 3/4) esvaem-se na realização de actos clínicos de baixo valor, que praticamente não envolvem juízo clínico activo (renovações de receituário e de meios complementares de diagnóstico e de terapêutica “crónicos”) e em períodos de falha dos sistemas informáticos da saúde dos quais a sua prática clínica está hoje refém (vários e profundamente anacrónicos e sem interoperabilidade). Essas falhas originaram, nesta investigação, mais de 70 minutos perdidos por semana. A sua compensação, claro está, é feita à custa do tempo pessoal, de família e de repouso, dos MF – aumentando o risco de burnout, uma realidade hoje infelizmente bem conhecida por estes profissionais.

A resposta a pedidos de renovação de medicação crónica é, só por si, um case study de ineficiência em economia da saúde: ocupa mais de 2h/semana, sendo que 1/3 deste tempo serve apenas para dar resposta a pedidos de doentes que têm receituário prescrito, mas perderam a receita em papel, apagaram ou não sabem o que fazer com a enigmática SMS que receberam, nem como recuperá-la na app SNS 24... e voltam a pedi-la ao seu MF, gerando trabalho médico e de secretariado clínico duplicado e inútil.

Não existe, pasme-se, no Registo de Saúde Electrónico, um local de actualização fácil, fiável e obrigatória da medicação crónica do doente por cada prescritor que inicie uma nova substância, que esteja acessível aos médicos assistentes que a gerem e às farmácias que a dispensam, e que obviaria, com um adequado desenho, a este enorme desperdício de tempo em que todos os dias se debatem pacientes, médicos e farmácias num kafkiano labirinto de pedidos de emissão de receituário que, frequentemente, já existe.

Nos últimos dez anos, tendo em conta a bibliografia publicada e os achados deste trabalho, assistimos ao aumento de 55% do tempo de trabalho dos MF ocupado pela renovação do receituário crónico, apesar de toda a digitalização que se tem tentado introduzir na Saúde. Só um sistema de prescrição e de dispensa de medicação crónica profundamente ineficiente e mal desenhado como o que temos explica esta aflitiva evolução. É urgente que a próxima DE-SNS, ou o que quer que lhe suceda, olhe para esta realidade, e faça os Serviços Partilhados do Ministério de Saúde agir para lhe pôr termo.

Houve outras ineficiências conhecidas que foram estudadas e quantificadas. Renovações mensais, às vezes, quinzenais, de tratamentos prolongados de medicina física e de reabilitação e terapia da fala, que deveriam, uma vez prescritos originalmente pelo MF, ser monitorizados e renovados (ou não) pelos fisiatras que os gerem na prática até ao seu termo. A análise de pedidos de transcrição de exames auxiliares provenientes de outros prestadores que, apesar de proibidos pela lei desde 2011, continuam a chegar ao MF porque os utentes lhe são direccionados de forma mais ou menos explícita pelos hospitais públicos que não lhes dão resposta, como deviam, encaminhando-os, se não possuem resposta interna, para convencionados, ou porque o doente está a ser seguido por opção ou ausência de resposta pública numa instituição privada e pretende, legitimamente, fazê-los com a comparticipação do SNS, como acontece com os medicamentos que no mesmo contexto lhe são prescritos. Estas duas tarefas consomem, no seu conjunto, mais de uma hora por semana aos MF.

Resolver estas ineficiências é urgente, num momento em que se procura a pedra filosofal para solucionar a falta de médicos de família no SNS. Cerca de 4,5 horas perdidas para ineficiências (e estas, as que foram estudadas, são apenas algumas…) permitiriam, com listas de utentes ajustadas à realidade, informática amiga do utilizador e tarefas limpas de ocupações burocráticas, efectuar por semana nada mais nada menos do que 18 consultas de doença aguda, mais breves, ou 9 consultas programadas de Medicina Geral e Familiar de qualidade, com 30 minutos, onde de facto cuidemos produtivamente, como sabemos fazer, dos nossos pacientes. E não é a consulta a única tarefa que deve ser executada pelos MF.

Ontem já era tarde para dotar a Saúde de um sistema de informação único, fiável, interoperável e funcionante, garantindo que se ouvem na sua concepção os profissionais que o usam, que se atende à segurança e necessidades dos pacientes, e ao uso eficiente dos recursos.

Olhar – de facto, e não apenas na retórica política – para a Medicina Geral e Familiar como um recurso fundamental para potenciar de forma eficiente a saúde das populações é não permitir que se sufoque cada vez mais com um número crescente de tarefas que lhe são “despejadas” sem cuidar de saber da sua capacidade e condições de resposta, comprometendo o potencial dos MF para fazerem o que sabem fazer como ninguém – e que a evidência mostra que condiciona positiva e eficazmente os resultados em saúde de uma população.

Como dizia alguém, "deixem-nos trabalhar". Mas dêem-nos as condições para o fazermos com a qualidade e dignidade que podemos oferecer, sem adoecermos.

Seremos cada vez menos os disponíveis para continuar no SNS se nos mantivermos neste caminho, e sem médicos de família não há sistema de saúde saudável, como sem água não há vida.

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