Portela + 1 acabaria por ser Portela + 2

A recomendação da CTI, de se construir uma primeira pista no local escolhido para o novo aeroporto, para funcionar temporariamente em conjunto com a Portela, faz muito mais sentido.

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Começo por declarar que não conheço nenhum dos membros da Comissão Independente (CTI), nem tenho mandato para atuar em sua defesa. O que me move é o dever de consciência de reagir a artigo cujo autor não se coíbe de desenvolver um conjunto de teorias baseadas em afirmações avulsas que visam desvalorizar os membros da CTI e o Relatório Final, de 11 de março de 2024.

Em Aeroporto de Lisboa: é melhor repensar (PÚBLICO de 8/4/2024), S. Pompeu Santos​ põe em causa a competência, a independência e a isenção da coordenadora-geral e restante equipa da CTI. Seria no mínimo exigível que concretizasse em que se baseia para fazer tais ataques aos membros da CTI. A demais argumentação utilizada praticamente replica posições manifestadas repetidamente pela ANA na defesa da solução Portela + 1 (Montijo).

É preciso que se diga que esta solução aeroportuária é a ideal para a concessionária ANA/Vinci atingir o seu objetivo principal: continuar a explorar o altamente rentável Aeroporto Humberto Delgado (AHD) pelo máximo de tempo possível. Se essa solução aeroportuária convém ou não ao país é o que menos lhe interessa.

Como esta verdade é inconveniente, a ANA/Vinci construiu uma narrativa (que tem vários seguidores, com presença assídua nos media) que inclui, repetidas até à exaustão, afirmações como:

  • Portela + Montijo é a solução mais eficaz e mais barata, garantindo por 30 anos a capacidade aeroportuária de que a região de Lisboa necessita;
  • A potencial não renovação da Declaração de Impacto Ambiental (DIA) do Montijo, agora em cima da mesa, resulta de uma espécie de conspiração (não se sabe de quem);
  • Não se justifica um grande aeroporto porque o tráfego vai crescer muito menos do que as projeções da CTI indicam (mesmo tendo sido desenvolvidas segundo processos metodologicamente fundamentados e tendo como base organizações internacionais reconhecidas como a Internacional Civil Aviation Organisation-Nações Unidas, o Eurocontrol-Agência Europeia para a Segurança da Navegação Aérea e a ACI-Airports Council International);
  • A solução de um novo aeroporto no Campo de Tiro de Alcochete é, portanto, megalómana, desnecessária e demasiado cara.

E, mais recentemente e com objetivos idênticos, que:

  • A Comissão Técnica Independente afinal não é independente, uma vez que os seus membros têm opiniões próprias;
  • Que não é preciso criar uma infraestrutura nova para que haja um hub (plataforma aeroportuária de ligação entre voos de médio e de longo curso) em Lisboa, uma vez que a Portela já o é;
  • As companhias estrangeiras não estão nada interessadas no hub em Lisboa.

Vamos aos factos.

Contrariamente à narrativa da ANA, o aeroporto complementar no Montijo não traria qualquer valor acrescentado ao hub de Lisboa, visto que só serviria para voos de médio curso sem ligação ao longo curso (ex; companhias low-cost). Acresce que as obras programadas na Portela, podendo melhorar a qualidade do serviço, nada acrescentarão em termos de capacidade. Os anunciados 48 movimentos por hora estão fora de questão. Mesmo dispondo-se a ANA a realizar os (vultosos) investimentos necessários para os atingir, é pouco provável que obtivesse uma DIA favorável, já que o aumento do tráfego iria piorar o já excessivo impacto ambiental sobre a cidade.

Quanto à invocada capacidade de 24 movimentos por hora no Montijo, o projeto de layout tornado público não permitirá chegar sequer perto desse objetivo. Sobre a eficácia e a longevidade da solução, estamos, portanto, conversados.

Também não será de estranhar a possível não renovação da DIA do Montijo, por muitos considerada escandalosa quando emitida, impondo 159 medidas de mitigação e com mais de mil opiniões negativas na consulta pública. Nem o risco de colisão das aeronaves com aves foi avaliado, como é exigível.

Se, não obstante, for tomada, à revelia dos pareceres técnicos, a decisão política de avançar com esta opção aeroportuária, acabará por se tornar necessário a prazo construir um aeroporto de raiz, ocorrendo então a situação caricata (e mais dispendiosa) de um “Portela + 2”. Onde fica o propalado custo/benefício da solução Portela + 1 (Montijo)?

A recomendação da CTI, de se construir uma primeira pista no local escolhido para o novo aeroporto, para funcionar temporariamente em conjunto com a Portela, faz muito mais sentido, porque o investimento será completamente aproveitado durante as fases subsequentes de desenvolvimento do novo aeroporto.

Posto isto, pode-se afirmar com segurança que a opção Portela + Montijo é completamente irracional e mesmo desastrosa para o país.

É, no mínimo, curiosa a afirmação de S. Pompeu Santos que a CTI é técnica por ser constituída por engenheiros e economistas, mas não independente por os seus membros terem opiniões. Não são as licenciaturas em Economia e Engenharia que, só por si, conferem aos membros da CTI a qualidade técnica para a missão que lhes foi atribuída, mas sobretudo o percurso que fizeram após a formação académica de base – e há que reconhecer que todos têm um currículo notável nas áreas a que se dedicaram. Quanto à independência, o autor parece crer que as pessoas independentes não podem ter opiniões! O processo que levou às conclusões da CTI foi transparente, rigoroso, amplamente participado e escrutinado.

A referência aos hipotéticos 140 milhões de passageiros em 2086 tem obviamente o propósito de ridicularizar os números da CTI. Se o autor tivesse lido com atenção as partes relevantes do relatório em causa, facilmente concluiria que as projeções entre 2050 e 2086 são pouco mais de que um exercício académico, o que a própria CTI admite implicitamente, ao afirmar que as projeções das organizações internacionais em que se baseia têm previsões de tráfego somente até 2050. Ora, ao analisarem-se as projeções da CTI para 2050, encontra-se para o cenário intermédio de crescimento um valor ligeiramente superior a 80 milhões de passageiros/ano, valor próximo do atual de Londres/Heathrow, o que desmonta o argumento.

O autor afirma ainda que a Portela já é um hub: para quê fazer um novo aeroporto com esse objetivo? Acontece que a Portela não só não proporciona condições minimamente aceitáveis para esse tipo de operação por parte da TAP, como não dispõe de capacidade remanescente para outras companhias. As razões são várias e não disponho de espaço para as detalhar aqui. A TAP afirmou que, face à saturação da Portela, perde 1,8 milhões de passageiros por ano.

Outra afirmação do artigo em causa é que as companhias estrangeiras não estão interessadas no hub em Lisboa. Sendo certo que o hub interessa sobretudo ao país e à TAP, outras companhias, principalmente as pertencentes à Star Alliance, beneficiam da sua existência, dado que transportam passageiros para e a partir de Lisboa em ligação com o longo curso da TAP. Este segmento de mercado não será totalmente despiciendo para algumas low-cost.

Por último, a recomendação do autor no final do artigo, no sentido de suscitar o medo de decidir, ao propor a substituição da melhor opção estratégica pelo “baratinho”, mas ineficaz, num registo de “Portugal dos Pequenitos”, traz à memória a figura criada por Camões do “velho do Restelo”. Ainda bem que os nossos bravos navegadores não escutaram esse tipo de conselhos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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