Um homem, um voto: uma treta

O macrocéfalo sistema eleitoral português é, de facto, o melhor apelo ao voto útil nas maiores forças políticas.

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Lamento desde já o título nada inclusivo e em flagrante contramão face aos tempos de hoje, mas a versão “um eleitor, um voto” mantinha o problema de raiz e a hipótese “uma pessoa, um voto” carecia, de tão neutral, a eficácia que se pede a um título que se queira minimamente apelativo.

O sufrágio universal é um fundamento básico de qualquer democracia e pressupõe que a cada “eleitor(a)” corresponde “um voto” de igual valor, seja esse(a) eleitor(a) rico(a), pobre, mais ou menos instruído(a), de esquerda ou de direita, do Norte ou do Sul do país. Problema: em Portugal não é assim.

Votar no litoral ou no interior não é a mesma coisa e quem vota nos distritos em desertificação acelerada não está em igualdade de circunstâncias relativamente ao eleitorado dos círculos eleitorais mais populosos. Conclusão: há eleitores de primeira e eleitores de segunda. Nas legislativas de 2022, em cerca de 5,5 milhões de votos, mais de 671 mil foram directamente da urna para o caixote do lixo. Eu, que sou natural de Trancoso, distrito da Guarda, só nesta eleição, ao fim de 22 anos como eleitor, terei a possibilidade plena, porque mudei de residência para a região onde trabalho, de escolher o partido em que quero votar, não estando coarctado por saber que no meu círculo eleitoral só são eleitos deputados de PS e PSD.

Na campanha eleitoral em curso tem-se intensificado o apelo ao voto útil por parte da Aliança Democrática e, sobretudo nos últimos dias, do PS. Sendo impossível medir a eficácia destes apelos, é mais do que possível concluir que o macrocéfalo sistema eleitoral português é, de facto, o melhor apelo ao voto útil nas maiores forças políticas. Se o método de Hondt favorece os partidos mais votados, a inexistência de mecanismos de compensação penaliza os pequenos e, sobretudo, enfraquece a pluralidade que no 50.º aniversário do 25 de Abril tão propalada será.

Ora vejamos. Após anos de uma tendência de paulatina, mas progressiva, depreciação da representação eleitoral dos territórios do interior, nas eleições do próximo domingo os círculos de Beja (3), Bragança (3), Castelo Branco (4), Évora (3), Guarda (3) e Portalegre (2) vão eleger somente 18 dos 230 deputados da Assembleia da República (7,8% do total). Aveiro (16), Braga (19), Lisboa (48), Porto (40) e Setúbal (19, mais um do que nas legislativas de 2022, porque este distrito viu crescer o número de residentes) elegem 142 (quase 62% do total).

Em Outubro último, a proposta da Iniciativa Liberal (IL) para a criação de um círculo de compensação nacional com 40 deputados foi chumbada com os votos contra de PS, PSD e PCP.

E nas eleições regionais dos Açores do passado dia 4 de Fevereiro, sem o círculo de compensação – esta região autónoma é a única no país que tem este mecanismo –, Bloco de Esquerda, IL e PAN não teriam elegido qualquer deputado, o que teria deixado o Parlamento açoriano apenas com deputados da coligação PSD-CDS-PPM, do PS e do Chega.

Luís Montenegro, presidente do PSD e líder da AD, prometeu esta semana maior representação política para o interior – que nos círculos com menor população seria compensada pela respectiva dimensão territorial – e Pedro Nuno Santos, líder do PS, não se cansa de falar num Portugal inteiro onde todos são importantes. Mas, até agora, só IL, PAN e Livre se comprometem com a defesa de um círculo de compensação nacional. Os liberais vão mesmo avançar, outra vez, com uma proposta nesse sentido na próxima legislatura. Já PS, PSD, Bloco de Esquerda e PCP admitem reflectir sobre mexidas no sistema eleitoral para o tornar mais representativo, mas não assumem posições concretas. É que, em especial para socialistas e sociais-democratas, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

Diz-se que o voto é uma arma, mas para quem vive no interior o tiro pode não passar de pólvora seca.

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