Área de Sines: na falta de planeamento caminhamos para um desastre territorial?

A reconfiguração da base económica e social da Área de Sines ocorre na ausência de uma política de desenvolvimento territorial ajustada à magnitude e complexidade da transformação em curso.

Foto
Porto de Sines LUSA/MIGUEL A. LOPES
Ouça este artigo
00:00
08:13

1. A área de Sines, que acolheu durante décadas um projeto classificado como “elefante branco”, apresenta-se hoje como um território onde está em curso um dos mais singulares processos de crescimento económico polarizado alguma vez verificado no espaço nacional. Mas, envolto numa abordagem de desenvolvimento das regiões de tipo colonial e extrativista, a ausência de um processo de planeamento abre espaço ao risco da emergência de um desastre territorial de grande escala.

2. As dinâmicas de investimento em curso não têm, de facto, paralelo na histórica económica do Alentejo e em nenhum ponto da geografia económica nacional. Para esta singularidade contribuem a gigantesca dimensão e a natureza do investimento que se perspetiva, a curta escala temporal da sua concretização, a elevada polarização espacial e, também, os disruptivos efeitos territoriais que aquelas dinâmicas arrastam.

Os 20 mil milhões de euros de investimento anunciados, em setores e infraestruturas económicas pesadas, alargam significativamente a base da economia local e reforçam o efeito de polarização: os novos terminais de contentores reforçam a posição de Sines nos fluxos globais de carga contentorizada (com destino e origem na Europa); os cabos digitais intercontinentais de ligação à América do Sul, norte de África e bacia do Mediterrâneo, abrem espaço à nova economia de dados a uma escala intercontinental; os investimentos nas designadas energias limpas abrem o capítulo dos setores da descarbonização.

Por seu turno, as infraestruturas de transportes e comunicações alargam o hinterland do porto de Sines e a área de influência das atividades ali concentradas. A geração de um novo quadro de fatores de desenvolvimento e de atração empresarial conduzirá a área de Sines para uma nova posição, reforçada e qualificada, no quadro da geoeconomia à escala nacional, ibérica e europeia.

Do ponto de vista do emprego e da população, as alterações que se perspetivam pautam-se também pela extraordinária dimensão dos números. O acréscimo estimado de 8.000 novos postos de trabalho, que corresponde a mais do que duplicar o número atual de trabalhadores no setor industrial, logístico e de transportes no conjunto dos concelhos de Sines e de Santiago do Cacém, não só ampliará, numa escala sem paralelo, a força de trabalho disponível como induzirá importantes alterações no padrão de qualificações e competências, introduzindo alterações significativas no tecido social local.

Por outro lado, o súbito aumento do emprego arrastará um também súbito aumento da população em níveis igualmente extraordinários. Mais população e mais massa salarial disponível terá como consequência uma ampliação do fenómeno urbano e a geração de uma nova economia local que acentuará o efeito de polarização e centralidade com o desenvolvimento de novas e superiores funções urbanas.

3. A área de Sines está, pois, na antecâmara de uma mudança estrutural (nalguns aspetos, uma verdadeira mudança disruptiva) em todas as suas dimensões. As narrativas oficiais sobre as dinâmicas em curso concentram o foco nos investimentos setoriais e na importância que estes investimentos, cada um por si, têm em termos de emprego, de produção e do desenvolvimento nacional dos respetivos setores. Trata-se de uma narrativa apoiada numa perspetiva funcional e setorial que não capta o que de estrategicamente relevante ali se está a passar porque exclui o elemento nuclear das dinâmicas em curso.

De facto, o que a mudança estrutural a ocorrer atualmente na área de Sines consubstancia é a construção de um novo território nas suas múltiplas dimensões. Uma nova unidade e realidade territorial, qualitativamente diferente da existente e fruto das interações geradas pelas dinâmicas económicas e sociais, presentes e futuras: um novo território económico e tecnológico, um novo território urbano, um território com uma nova configuração social e institucional. Evidentemente, um território com uma nova relação com os recursos naturais e o contexto ambiental que o envolve. Um território, por fim, com um novo quadro de relações com a região onde se insere, o Alentejo, com o resto do país e além-fronteiras.

O espaço de discussão sobre o futuro da área de Sines, espaço que deveria condicionar tudo o que diz respeito a iniciativas individuais, privadas e públicas, é o espaço das políticas de base territorial, políticas de desenvolvimento e de ordenamento do território.

4. Também contrariamente ao que o discurso e o marketing oficial procura impor, não é na cidade ou no concelho de Sines que se encontra a escala relevante para uma abordagem do que está em curso. Não o foi no projeto original do complexo de Sines, não o é no contexto atual como tão bem sabem os que ali vivem e trabalham, populações e instituições. É no sistema urbano polinucleado formado pelas cidades de Sines, Santiago do Cacém e Santo André, uma verdadeira região-funcional de intensas interações, que se encontra o enorme potencial de construção de um novo polo regional de desenvolvimento.

Trata-se de recuperar uma proposta central do projeto original de Sines (a Área de Sines), dar expressão concreta a uma ideia visionária do Professor Costa Lobo (o trevo urbano) e concretizar um objetivo estratégico, definido há mais de uma década no PROT do Alentejo, que tem sido olimpicamente marginalizado por toda a cadeia de poderes públicos vinculados pelo Plano, com particular gravidade para a CCDR do Alentejo e para todo o Governo nacional.

5. Este é o grande desafio com que a Área de Sines hoje se depara: construir uma visão de futuro que estabeleça como desígnio estratégico a construção de um novo centro económico e urbano, de escala regional, e com um forte grau de abertura a dinâmicas globais. Uma cidade polinucleada concebida no quadro dos mais exigentes princípios do desenvolvimento sustentável (ONU). Um verdadeiro laboratório-vivo de políticas públicas de desenvolvimento territorial e urbano que articulem a promoção de um sistema local de produção (ao serviço do desenvolvimento do país e da região Alentejo) com a estruturação e qualificação urbanas necessárias à afirmação da nova cidade no quadro regional e nacional. É esta, e nenhuma outra, a questão primeira que hoje interessa debater sobre o desenvolvimento da Área de Sines.

Mas este grande desafio de desenvolvimento encontra-se bloqueado por um paradoxo que pode ter expressão num desastre territorial de grande dimensão: a certeza de uma profunda reconfiguração da base económica, social e territorial da Área de Sines é acompanhada pela ausência de uma política de desenvolvimento territorial integrado ajustada à magnitude e complexidade do processo de transformação em curso. A Área de Sines está, sim, órfã de uma política pública de base territorial.

6. Na falta de plano e de planeamento é na questão urbana onde o desastre territorial terá a sua mais relevante (e imediata) expressão. Sem planeamento perde-se a oportunidade de pensar a posição da Área de Sines no quadro da rede urbana regional e a sua relação funcional com o sul do país e com Espanha. O risco da criação de um enclave territorial desarticulado, nomeadamente, do restante Alentejo, é evidente. Sem projeto de cidade polinucleada perde-se a oportunidade para se imaginar uma cidade virada para o futuro, desenvolvida com base no conhecimento e na inovação; uma cidade de justiça social e bem-estar, ecologicamente sustentável e bela. Sem programa de provisão de serviços coletivos abre-se a porta à mercantilização do acesso a direitos sociais e à emergência de uma nova geração de desigualdades sociais.

Por último, o artigo 65.º da Constituição: sem um robusto programa público de urbanização, acompanhado de um também robusto programa público de habitação (ambos exigindo uma forte intervenção estatal, em parceria com os municípios, fundada numa rigorosa política de solos), estão lançadas as condições para uma colossal transferência de valor para os proprietários da terra e da habitação e o desencadear dos tradicionais mecanismos fomentadores de uma escalada de especulação imobiliária acompanhada de uma violenta carência habitacional com consequências sociais imprevistas.

A “cidade” que daqui resulta já lhe conhecemos os traços: à escala do lote ou do loteamento, e “em conformidade com o PDM”, será uma cidade ao sabor dos interesses, do tempo e do modo do promotor privado. Um território urbano fragmentado, disfuncional, dependente do automóvel, insustentável. Enfim, uma “cidade” fora do tempo… um desastre territorial.

7. Na falta de planeamento público e democrático, a Área de Sines será, pois, um território fácil para o trabalho de influencers e, já agora, também, um espaço fértil para a atividade de facilitators.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico e utiliza como título do artigo o título da comunicação que apresentou ao colóquio Planeamento Público e Democrático, organizado pelo Observatório sobre Crises e Alternativas (CES – Coimbra), que decorreu nos dias 16 e 17 de janeiro de 2023, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários