As vinhas do Alentejo resistem à seca e estão cada vez mais sustentáveis. Mas como?
O Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo tem 650 produtores que usam medidas cada vez mais ecológicas para reduzir os gastos e os produtos químicos. E até morcegos e ovelhas ajudam.
Há 40 anos, quando o alemão Horst Zeppenfeld, antigo capitão da marinha mercante, comprou a Herdade dos Lagos, perto de Mértola, a propriedade era um deserto. “Foi um visionário”, conta Helena Manuel, a gestora agrícola da herdade com mil hectares. “Imediatamente, mandou reter a maior quantidade de água e reflorestar o mais possível.”
O nome, Herdade dos Lagos, vem das cinco barragens que Zeppenfeld construiu na altura, as únicas das redondezas. “Só temos água da chuva, não estamos ligados ao Alqueva, nem temos furos”, explica Helena Manuel, enquanto nos leva por um passeio pelos 32 hectares de vinha. “Temos de rezar para que o São Pedro nos mande água com frequência.”
No dia anterior, as preces foram ouvidas. Pelas contas da gestora agrícola, choveu o equivalente a “50 litros em 24 horas”. “Chove muito em pouco tempo. Óptimo para encher barragens, péssimo para o resto”, comenta, a apontar para o chão enlameado.
A região enfrenta uma “seca extrema”, diz, e só dois dos cinco lagos da propriedade têm neste momento água para rega. “É preciso um Inverno muito chuvoso para que encham, o que não acontece”, sublinha.
Todos os anos, a propriedade tem vindo a poupar cada vez mais água na produção de vinhos, 90% para exportação. “No cenário que tínhamos, não fazia sentido continuar a abrir torneiras e fingir que nada se passava...”, diz.
A poupança de água começou a fazer ainda mais sentido quando, em 2015, a herdade se inscreveu no Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo (PSVA), no mesmo ano em que foi lançado.
Pioneiro nas práticas sustentáveis na vitivinicultura nacional, o programa já recebeu várias distinções internacionais e lançou esta semana uma versão 2.0, mais adaptada aos desafios criados pelas alterações climáticas, numa parceria inédita com a ONG ambiental ANP/WWF, que trabalhou com os produtores do Alentejo inscritos.
Actualmente, são perto de 650 inscritos, 20 deles a ostentar o “certificado PSVA”, um selo lançado em 2020 para quem cumpre todos os 171 critérios de sustentabilidade, a primeira distinção no país deste género e a servir de modelo à certificação nacional gerida pela ViniPortugal, de 2022.
Segundo João Barroso, engenheiro ambiental e coordenador do PSVA, o objectivo do programa que começou a ser pensado em 2013 não foi só a “sobrevivência” à seca. A “competitividade no mercado externo”, principalmente no Norte da Europa, um mercado sensível a questões ambientais, também serviu de incentivo.
A Herdade dos Grous foi a primeira a obter a certificação, em 2020, a última, a Herdade do Paço do Conde, conseguiu o “selo” já no mês passado e, entre as cooperativas, a Adega de Borba foi a primeira a certificar-se pelo PSVA. A Herdade dos Lagos foi o terceiro produtor a certificar-se, em 2021, uma “continuação” do trabalho de que já vinham a fazer, diz a gestora agrícola da propriedade. “Fazíamos muita coisa [em termos de sustentabilidade], mas [antes do PSVA] não quantificávamos nem conseguíamos mostrar aos consumidores”, afirma.
A adesão ao PSVA pressupõe um acompanhamento da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA), uma formação contínua com outros produtores e uma minuciosa contagem dos consumos de produção, da água à energia, dos resíduos aos combustíveis.
O objectivo é que os gastos se reduzam, alguns para menos de metade, como no caso da Herdade dos Lagos. “Em 2015, gastavam-se cerca de 3800 metros cúbicos de água por hectare”, confirma Helena Manuel. “Actualmente andamos na ordem dos 1500 metros cúbicos.”
A redução dos consumos de água faz-se de várias maneiras, com pistolas nas mangueiras ou com sondas de solo, para perceber a quantidade de água que uma planta necessita. A enóloga Marta Pereira, na Herdade dos Lagos há seis anos, tem uma meta ambiciosa: “Quero chegar à etapa de, para uma garrafa de vinho, gastar só um litro de água. Por enquanto ainda estamos nos 2,5 [litros].”
Desde que aderiram ao PSVA, pequenas medidas têm ajudado à biodiversidade na vinha. Por exemplo, as casas de morcego, úteis no controlo de pragas. “Estas são recentes, são maternidades. Estamos a ver se eles se adaptam”, conta Helena.
Outras plantas, como a Dittrichia viscosa, ajudam a afastar bichos quer na vinha, quer no olival. “São um refúgio muito importante de um vespídeo que é predador, por exemplo, da mosca da azeitona”, continua.
As redes de ensombramento também protegem as uvas, não só do calor, mas também das aves. Com isto, a herdade tem funcionado em agricultura biológica e reduziu os produtos químicos “quase a zero”, garante a gestora agrícola.
A vindima manual, que com as alterações climáticas tem começado cada vez mais cedo (este ano na Herdade dos Lagos foi a 3 de Agosto), passou a fazer-se à noite, para continuar a garantir a qualidade do vinho.
Além de poupar os trabalhadores a temperaturas de mais de 40 graus, permite que as uvas cheguem à adega com a máxima qualidade, à temperatura ideal, sem ser necessário usar máquinas de arrefecimento. “Chegam frescas”, comenta a enóloga Marta Pereira. “Antes tínhamos de usar camisas de frio para baixar a temperatura, a 18, 20 graus. Mudando só um parâmetro, alterou-se tudo e os trabalhadores também ficam mais felizes.”
Ovelhas e lacre de cera
A herdade de 200 hectares da família de Bárbara Monteiro no Vimieiro, no Alto Alentejo, a produzir os vinhos Mainova, fez a primeira vindima na adega em 2019 e hoje também opta pela vindima manual e nocturna, para obter a melhor uva e reduzir consumos.
A adega foi feita já a pensar na optimização energética e de produção, até na construção, “de forma térmica, com cortiça”, e com “clarabóias para dar luz natural”, explica Bárbara, a mais nova das irmãs da família.
Inscreveram-se no PSVA no final de 2020, no mesmo ano em que os vinhos entraram para o mercado, apesar de já terem antes “algumas preocupações ambientais”, sublinha. “Temos uma minicentral fotovoltaica com 15 anos. Contam-se pelos dedos de uma mão as dessa altura.”
Na propriedade com 20 hectares de vinha, a água vem de uma barragem que é partilhada com um vizinho. De outro vizinho, também vêm as ovelhas pastar, outra ajuda no ecossistema da herdade: além de estrumarem a terra, também comem as ervas daninhas.
O programa tem sido uma ajuda, principalmente para “aprender com os outros produtores”, sublinha Bárbara. “Sendo uma empresa pequenina já com este mindset e valores ambientais, sentimos que muitas práticas nós já exercíamos, mas não eram registadas”, continua Bárbara.
Aliás, a grande dificuldade da Mainova tem sido precisamente essa, conseguir registar tudo para preencher os 171 critérios do PSVA e candidatar-se a uma certificação.
Ainda assim, o facto de fazerem parte do programa já está a abrir portas no mercado estrangeiro. Cerca de 40% dos vinhos da Mainova são para exportação para a União Europeia e para países como os Estados Unidos ou a Coreia do Sul. A tendência será crescer e Bárbara sabe isso.
As embalagens merecem uma atenção especial, com vidro reciclado e lacre de cera de abelha, em vez das tradicionais cápsulas de plástico. Também as caixas de transporte são simples, sem tintas com verniz e feitas de cartão reciclado.
Rolhas reaproveitadas e certificação
Em Évora, na Adega Cartuxa, da Fundação Eugénio de Almeida, a cumprir 60 anos de existência e o maior exportador de vinhos europeus para o Brasil em 2022, os resíduos também são um desafio.
O enólogo Duarte Lopes conta que uma lição importante é agir de imediato para não adiar o reaproveitamento. “Se [os resíduos] não são imediatamente colocados no circuito, se forem encostados, vão ficando”, garante. Sempre que há acumulação de rolhas, por exemplo, a Cartuxa leva-as a uma empresa de Abrantes, que as transforma em peças de mobiliário de cortiça.
De acordo com o responsável pelo PSVA, a Cartuxa está “em vias” de obter a certificação. Estão inscritos no programa desde o início, mas o facto de serem uma empresa grande, com “muito que fazer”, diz João Barroso, foi adiando o processo.
O enólogo Duarte Lopes concorda. No final do ano passado, a fundação com 650 hectares de vinho contratou uma pessoa da área do ambiente só para trabalhar as questões relacionadas com a sustentabilidade e a elegibilidade ao certificado.
A construção de uma nova adega, em 2016, já tinha ditado novas práticas de sustentabilidade com um reaproveitamento de 100% da água utilizada e menos gastos. “Há dez anos consumíamos cerca de sete litros de água para produzir um litro de vinho. Hoje estamos com valores de 0,8/0,9 litros”, afirma o enólogo.
Por preencherem todos os critérios de sustentabilidade, até ao final do ano deverão conseguir a certificação. Um selo importante em termos de “eficiência”, diz. “Até porque não temos a água que tínhamos há 15 anos”.
No entanto, reconhece que, para todos os produtores, os benefícios também são de “comercialização”. “Cada vez mais os mercados estão mais alerta à parte climática. Os mercados do Novo Mundo e, principalmente, do Norte da Europa, que são mercados totalmente verdes.”
Quando a Herdade dos Lagos obteve a certificação, há dois anos, apareceram novas oportunidades de negócio. “Desde que temos o selo [do PSVA], abrimos clientes no Reino Unido e estamos na calha de um tender para a Suécia, que abriu com esta especificação de ser biológico e de produção sustentável”, conta Helena Manuel. “O Canadá também reconhece este programa.”
Um reconhecimento que chega ao fim de alguns anos de trabalho e resiliência (às vezes 40, como o caso da Herdade dos Lagos), à mercê dos elementos. “É por tentativa e erro”, ri-se Helena Manuel. “Também já fomos o maior amendoal do Alentejo há 20 e tal anos, mas deu errado.”