OE2024: não é com cosmética que se cumpre o direito à habitação

Perante esta crise tão profunda, a proposta de OE fica aquém. Há medidas paliativas que não farão descer os preços das casas e algumas medidas mais estruturais que não resolverão a crise.

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António Costa definiu que até abril de 2024 acabariam finalmente as carências de habitação em Portugal. Sabemos já que tal não vai apenas ser incumprido, como os problemas habitacionais em Portugal se acentuaram.

Desde 2013, os preços com a casa aumentaram mais de 100%. Apesar de existirem razões internacionais (como as políticas monetárias expansionistas, que aumentaram o preço dos ativos a nível internacional), estes aumentos foram também incentivados pelas políticas nacionais.

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Perante esta situação, há quem defenda que basta construir mais para os preços baixarem. Acontece que, apesar de o número de fogos construídos anualmente ter caído (de 125 mil no ano de 2002 para 20 mil em 2022), o acréscimo dos preços de habitação não é, nem nunca foi, motivado pela falta de casas. Aliás, a este pequeno aumento de oferta, junta-se uma procura (número de famílias) que tem vindo a baixar. De facto, Portugal era, em 2019, o 2.º país da OCDE com um número mais elevado de fogos por 1000 habitantes, com cerca de 577 fogos.

As causas são outras: expansão do turismo (com um crescimento das exportações de cerca de 105% entre 2014 e 2022); benefícios fiscais para fundos de investimento imobiliário; venda de milhares de imóveis que faziam parte das carteiras de imparidades de bancos portugueses a fundos internacionais; "vistos gold"; regime fiscal para Residentes Não-Habituais; liberalização do mercado de arrendamento (conhecida como “Lei Cristas”). Tudo políticas que reduziram o poder negocial dos inquilinos e aumentaram o dos senhorios, deslocando uma importante fatia da oferta de arrendamento tradicional para áreas de mercado mais lucrativas.

Em síntese, todos estes fatores contribuíram para um aumento do investimento no setor do imobiliário, com um aumento significativo da aquisição de habitações por não residentes, que resultou na subida do preço do imobiliário em Portugal.

Perante esta crise tão profunda, a proposta de Orçamento do Estado para 2024 fica aquém. Por um lado, surgem medidas paliativas que não farão descer os preços das casas, e, por outro, há algumas medidas mais estruturais que não resolverão a crise em que vivemos.

As primeiras são as medidas de subsidiação das rendas e do crédito à habitação.

Quanto ao crédito à habitação, a principal medida apresentada é a da bonificação de juros. Consiste em aliviar as famílias no pagamento de juros em créditos com taxa variável, caso o indexante ultrapasse os 3%. Com um impacto orçamental estimado em 200 milhões de euros, trata-se de uma subsidiação direta à banca, de uma cedência ao lobby bancário que tem lucrado como nunca (cerca de 1,9 mil milhões de euros no 1.º semestre de 2023) e que não é devidamente taxado.

Outra medida que não toca nos interesses instalados é a da estabilização e redução da prestação. Consiste em fixar a prestação num valor que corresponda a 70% da Euribor a seis meses acrescida do spread contratualizado, durante os próximos dois anos. Mas nada afetará os lucros dos bancos, já que apenas se adia o pagamento do aumento dos juros, sem tocar no montante que o banco tem a receber. Se não hoje, assim os receberá daqui a seis anos. O caminho correto seria outro: implementar regras que limitassem a taxa de esforço associado ao crédito à habitação e que se chamasse a banca a pagar por esta limitação.

Quanto às rendas, medidas como o Apoio Extraordinário à Renda, Porta 65 Jovem, Porta 65+ e Arrendar para Subarrendar têm uma única consequência: manter o valor inflacionado e especulativo das rendas. Se o Estado já tem critérios definidos, como no âmbito do Porta 65, para estipular o valor de uma renda, porque não utilizá-los para uma medida de controlo de rendas, que baixe o valor das mesmas e que aumente o orçamento das famílias, para que não dependam de um subsídio do Governo? Portugal é um dos poucos países da Europa em que o mercado de arrendamento é totalmente liberalizado (sendo que a única exceção são alguns contratos celebrados no período pré-1990).

No que diz respeito a medidas estruturais, o Governo tem apenas uma narrativa: reforço da oferta pública.

Neste OE aumenta o montante de investimento com habitação. A título de exemplo, a alocação de verbas para o IHRU passará de 214,3 milhões de euros em 2023 para 671 milhões de euros, e o montante total de investimento será de 960,9 milhões de euros. No entanto, praticamente dois terços provirá de verbas do PRR (cerca de 605,4 milhões de euros). Além de que todo este investimento só será relevante se for efetivamente executado. E não seria a primeira vez que o dinheiro ficaria pelo papel…

Como demonstra a figura seguinte, Portugal é um dos países da União com menos habitação pública.

Países que têm um parque público robusto reduzem a volatilidade dos preços da habitação e evitam constantes subidas de preços (Alves, Sónia. "Planning for Affordable Housing: A comparative analysis of Portugal, England and Denmark" (2020)). Neste momento, Portugal tem 2% de habitação pública, sendo que as metas de chegar a 5% estão a falhar. Com tão pouca habitação pública e com um mercado desregulado, as famílias continuarão a ficar à mercê das dinâmicas predatórias que provocaram este aumento substancial com a casa.

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Além destes problemas, o Governo tem também sido equívoco em várias medidas. Anunciou o fim dos "vistos gold"mas mantém-nos para quem tem unidades de participação em fundos de capital de risco, tendo, ainda, provocado uma corrida àqueles vistos. Igualmente, no âmbito do OE2024, o Governo deixará de aceitar novas inscrições no regime fiscal dos Residentes Não Habituais para quem se torne contribuinte em Portugal em 2024 – porém, os atuais beneficiários ainda estarão ao abrigo do atual regime nos próximos dez anos. Esta situação não faz qualquer sentido, porque se estes dois regimes específicos de estímulo ao investimento estrangeiro se mantiverem, não será possível que a crise habitacional seja ultrapassada.

Dada a crise habitacional sem precedentes que estamos a viver, e as manifestações Casa para Viver que, em mais de 20 cidades, trouxeram dezenas de milhares de pessoas à rua exigindo ao Governo que leve a sério o direito à habitação, esperava-se mais deste Orçamento.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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