Roterdão, 2023, de Fernando Pessoa à avocado toast

A leitora Rita Neves decidiu partir à descoberta de Roterdão, nos Países Baixos. Uma cidade pensada para as bicicletas e onde as caminhadas se alongam....

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Passei uns dias em Roterdão, sem intenções de visitar a cidade. Fazendo minhas as palavras do escritor Emmanuel Carrère, as estadias no estrangeiro que prefiro são aquelas em que vou sem obrigações de turismo. Mas, tal como o escritor francês, acabo por visitar qualquer coisa.

Antes da visita, pensava em Roterdão como cidade portuária destruída durante a Segunda Guerra — e, claro, como importante ponto de entrada de droga na Europa —,​ mas não falemos de política. A combinação de canais estreitos e pitorescos, canais talvez mais largos do que o Sena em Paris, e edifícios moderníssimos por todo o lado tem tudo para agradar ao viajante urbano em busca de brisa marítima. Pode apreciar-se a pé, notando que esta cidade é obviamente pensada para trajectos em bicicleta; andar 15 minutos a pé aqui parece 45 para peões habituados a outras realidades.

Fiquei em Wilhelminapier, uma pequena península avançando pelo principal canal da cidade. Dali atravessa-se a ponte Erasmo para aceder ao centro. Na pequena península quase todos os prédios são altíssimos e recentes, há hotéis, escritórios, edifícios residenciais, e sobretudo o Hotel New York, edifício de 1917, contrastando com os arranha-céus, de tijolo escuro, onde funcionava a ligação marítima de passageiros de Roterdão a Nova Iorque. Para além da ligação marítima, cuja importância quase desapareceu nos anos 80, noutro pequeno prédio cor de tijolo pode ler-se Sumatra, Java, Borneo, Celebes, desta vez lembrando o passado colonial holandês. O Hotel New York existe desde os anos 90, tal como a ponte Erasmo.

Mas preferi ficar num hotel moderno, atraída por uma marca hoteleira clássica. Fui naturalmente apanhada pela realidade de um arranha-céus com 275 quartos, bar pós-hipster, qr code para tudo, mobília low cost. O charme de uma vista magnífica durante a manhã (room with sunrise view) conseguiria atenuar a desilusão de um quarto sem alcatifa. O recepcionista, um holandês chamado Boone que parece ter 18 anos, num misto de explosão de vida adolescente e códigos hoteleiros cool, mostra-me o mapa da cidade e indica-me as cubic houses. Como resistir?

É tempo de mencionar, caro leitor, que as estadias que prefiro são também aquelas que incluem pelo menos um dia completo fora do fim-de-semana. Um dia de trabalho, um dia “normal”, em que os habitantes vivem o dia-a-dia. Foi assim que, numa certa praça, não longe das famosas cubic houses, pude observar dois ajuntamentos semelhantes em dias consecutivos. No domingo, pouco antes das 12h, a multidão esperava impacientemente a abertura do Markthal. Na segunda-feira, pouco antes das 13h, número de pessoas equivalente, e certamente o entusiasmo não ficaria atrás, esperando a abertura da Biblioteca Pública. Visitei, claro, o Markthal.

O edifício do Markthal tem uma bela fachada envidraçada, evocando a gare central de Berlim, e o interior de pé direito imponente faz lembrar um mercado à antiga. Mas o edifício deste “mercado” nem dez anos tem, e é sobretudo um food court (ou food hall) com vários stands e restaurantes nas áreas laterais. Zona de conforto para turistas, música incessante, mas certamente a mais simples maneira de degustar gastronomia do Suriname. Estamos em 2023, e este não é sequer o único foodhall de Roterdão.

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Continuemos a andar a pé, rodeados de ciclistas (e incluindo obviamente aqueles com mochilas isotérmicas deliveroo), passando pelo edifício da câmara municipal, outra relíquia de antes da guerra. Cruzo alguns noivos, também noivas de vestido branco e véu muçulmano. Galgando ruas comerciais iguais a tantas outras ruas comerciais em cidades europeias, passando por zonas mais gentrificadas com cafés e lendo em várias montras “no cash”, acabo por entrar, anunciando um pedido de torrada, toast. A réplica “Avocado toast?” já nem me faz vacilar.

Roterdão tem também algumas livrarias, recomendo a Donner. Tem três andares, alcatifa de padrão quadriculado e cores quentes, café no último andar, que é dedicado sobretudo aos livros de viagem, incluindo inúmeros guias, mapas, relatos, e onde se vendem moleskine e outros blocos de notas. Nos outros pisos, muitos livros e muitos leitores, livros em holandês e inglês, e note-se a colecção razoável de traduções de autores de língua portuguesa, naturalmente incluindo Fernando Pessoa. Em linguagem técnica, diz-se que a livraria passa o teste FP.

Soa o momento do último passeio, candidato a lugar favorito de Roterdão. Junto ao Hotel New York, onde há uma escultura intitulada “Lost Luggage Depot”, no ponto em que dois canais se cruzam, olhando em frente sabemos que está o mar, mais além. Aqui, ouve-se o suave chapinhar das bóias amortecedoras junto ao cais, o som dos poucos barcos que passam, alguns barcos-táxi, e, longe, os motores dos carros, o tramway atravessando a ponte, os sinos de igreja, música de algum bar. O sol está ainda a pôr-se, chegam estes sons de várias margens dos canais, e, mais próximas, algumas conversas. Por aqui fico a ouvir a cidade.

Hora de partir, atravessei pela última vez a ponte Erasmo, desta vez de tramway, passando pelo monumento aos marinheiros mortos na Segunda Guerra, e também por várias bandeiras da Ucrânia hasteadas no cais. Na gare central, espero o Thalys, ida e volta de comboio, via Bruxelas. Ainda vendem postais, mas não selos. Ainda vendem jornais, poucos e discretos, dois New York Times, todos os outros holandeses. Esta é uma estação de corrente de ar, pouco dada a deambulações. Já estou no comboio, avistam-se uns poucos graffiti decorando a via férrea, mensagens de despedida para os viajantes: Fejenoord. Outras já perto de Bruxelas: Welcome migrants e Jexiste.

Rita Neves

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