Portugal de olho nos mosquitos Aedes, que transmitem doenças infecciosas

Estão na Madeira e em Portugal continental. As viagens e as alterações climáticas ajudam a disseminá-los e é preciso vigiar para travar a sua instalação em novos locais.

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Mosquito Aedes aegypti foi detectado na Madeira Paulo Whitaker/REUTERS

Podem vir à boleia de um pneu ensopado ou instalados com mais conforto dentro de um avião. Por cá, já foram encontrados em latas, sacos de plástico, vasos de flores em locais públicos e até numa pia de água benta numa igreja. Ajudados pelo bafo da crise climática, os mosquitos do género Aedes, que transmitem doenças virais, estão a conquistar novos territórios. Em Portugal, há uma rede de vigilância activa para detectar a sua presença. E se, por acaso, vir um mosquito que lhe pareça mais estranho, saiba que pode enviar a fotografia, e mesmo o corpo morto do insecto, para a morada do projecto Mosquito Web.

A Europa deve preparar-se para ter surtos de doenças virais transmitidas por mosquitos durante o Verão, como dengue, Zika e chikungunya, alertou a Organização Mundial da Saúde (OMS) recentemente. “Com as alterações climáticas, a área destas doenças tem crescido, em latitude e altitude”, disse, numa conferência de imprensa, Diana Rojas Alvarez, especialista da OMS nestas três doenças virais. Em Portugal, qual é o risco?

Na origem deste alerta está a expansão até à Europa de duas espécies invasoras de mosquitos do mesmo género, Aedes aegypti e Aedes albopictus. Estes mosquitos são vectores de doenças como dengue, Zika e chikungunya, cuja incidência aumentou nas últimas décadas.

É nas Américas que as doenças transmitidas por estes mosquitos fazem mais vítimas. “O que estamos a ver agora na América do Sul pode ser uma antevisão do que se vai passar na parte Norte”, salientou Diana Rojas Alvarez. A OMS está a lançar este alerta “para que os países detectem de forma precoce a introdução destes vírus”.

Para detectar os vírus, o primeiro passo é vigiar os mosquitos. “Estes processos de espécies invasoras têm dois momentos: a introdução, quando o mosquito chega; e depois se ele se instala”, explicou ao PÚBLICO Carla Sousa, investigadora da Unidade de Parasitologia Médica no Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT-NOVA), em Lisboa. É importante detectarmos precocemente a presença do mosquito. “Se não tiver passado um Inverno, ou seja, se não se tiver já instalado nessa região, há a possibilidade de impedir essa população de se estabelecer nessa localidade.”

Na Europa, estes mosquitos, do género Aedes, estão estabelecidos em 24 países, e desde 2010 que se registaram surtos de dengue ou chikungunya, diz a OMS. A nível mundial, das três doenças mencionadas no alerta, é a dengue que mais se expande: de 505.430 casos em 2000, passou para 5,2 milhões em 2022. Este ano, até ao fim de Março, registaram-se 441.898 casos e 119 mortes.

O vírus chikungunya está em 115 países e tem manifestações clínicas mais graves nos mais idosos e nos recém-nascidos. Há o risco de transmissão do vírus da mãe para o bebé durante o parto (49%) e 20% das mortes são de recém-nascidos.

Quanto ao Zika, foi declarado emergência de saúde pública internacional em 2016, com a identificação de casos de bebés com microcefalia (cabeça mais pequena que o normal) nascidos de mães infectadas. Além de passar da mãe para o feto, o vírus pode também transmitir-se por via sexual. Há 30 mil a 40 mil casos todos os anos.

Entrada pela Madeira

Foi o mosquito Aedes aegypti que chegou primeiro a território português – à Madeira, em 2005. Em 2012 causou um surto na ilha, com mais de 2000 casos. Em 2017, o mosquito Aedes albopictus foi detectado numa empresa de reciclagem de pneus, em Penafiel. Está também no Algarve (foi detectado nos concelhos de Loulé, Faro, Tavira, Olhão, Albufeira e São Brás de Alportel e no aeroporto e no porto de Faro) e, no ano passado, foi identificado pela primeira vez, na forma de ovos, no concelho de Mértola, no Alentejo.

Assinalado pela primeira vez na Europa em 1979, na Albânia, o Aedes albopictus é o que se está a dispersar mais pelo continente: foi detectado em 25 países e está estabelecido em 19, segundo o relatório de 2022 da Rede de Vigilância de Vectores (Revive), que é posta em prática pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge e a Direcção-Geral da Saúde.

Se estes mosquitos já estão em Portugal, então o risco é grande? A resposta não é simples, sublinhou Carla Sousa. “Há vários factores a ter em linha de conta. Como, por exemplo, qual a espécie de mosquito. Porque nem todas transmitem [as doenças] com a mesma eficiência”, explicou.

A espécie que chegou à Madeira é mais eficaz a transmitir doenças virais do que a que está no continente. Além disso, tem uma predilecção por sangue humano: “O Aedes aegypti é um mosquito que adora picar e alimentar-se em humanos. Já o Aedes albopictus, que existe na região continental, se não encontrar humanos, pica bem um porquinho ou qualquer outro animal que esteja ali mais à mão”, diferenciou Carla Sousa.

Para prever o risco, é preciso calcular as interacções de três actores: humanos, mosquitos e vírus. Já foi complicado controlar a pandemia de coronavírus, em que existiam dois actores – a pessoa infectada e o agente patogénico, lembra. “Agora tente imaginar um terceiro actor sobre o qual não temos muito controlo. Podemos dizer aos humanos que não façam isto, façam aquilo. Agora, ao mosquito, não podemos dizer-lhe ‘não piques’”.

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O mosquito Aedes albopictus GettyImages

Envie uma foto ou um mosquito

Certo é que, se tivermos vectores, é uma chamada à atenção. “Quando temos vectores, temos de começar a preocupar-nos”, salienta a cientista. “Desde que temos Aedes albopictus em Portugal continental, obviamente que o nosso nível de risco aumentou. Temos um programa de vigilância para o vector, a Rede Nacional de Vigilância de Vectores – Revive.”

A Revive faz vigilância activa, o que inclui colheitas sazonais de mosquitos (de Maio a Outubro e, em alguns casos, até Dezembro) e ovos, e abrange pontos de entrada como portos e aeroportos, onde são colocadas armadilhas.

“É provável que não se ganhe a guerra, porque este mosquito é mesmo invasor. O que queremos é que o número de espécimes se mantenha o mais baixo possível, para que não haja possibilidade de transmissão de agentes infecciosos”, afirmou Maria João Alves, coordenadora da Revive, à agência Lusa. “Mas existir o insecto não é sinónimo de doença”, sublinhou.

Para haver doença, o agente patogénico tem de estar presente também, e não tem sido detectado. Carla Sousa ilustra isto com um exemplo. “Um dos factores que aumentavam o risco de a Madeira voltar a ter um surto de dengue eram os voos directos da Venezuela e do Brasil, que penso que já não existem, passam todos por Lisboa. Isso é uma vantagem.” O que acontece, explicou, é que se passageiros eventualmente infectados passarem por Lisboa, onde não existe o vector – mosquitos do género Aedes –, ou até ficarem dois ou três dias, reduzem-se as probabilidades de transmitirem o vírus ao mosquito e iniciar-se um novo ciclo de infecção.

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Fumigação no Peru para tentar controlar populações do mosquito Aedes aegyti

Além do Revive, o IHMT tem também um projecto de ciência cidadã de vigilância passiva, Mosquito Web. Quem vir um mosquito pousado numa parede – ou, com todo o desplante, no seu braço, pronto a picar – pode (se tiver tempo) tentar puxar do telemóvel e tirar-lhe uma fotografia. Envia-a para IHMT através desta plataforma e os cientistas agradecem.

“Nós conseguimos, dependendo da fotografia, perceber se é ou não uma destas espécies invasoras”, garante Carla Sousa. Se conseguir apanhar o mosquito, também pode enviar os restos mortais do insecto: “Se uma pessoa for tão incomodada pelos mosquitos que coleccione exemplares, também pode enviar-nos, mesmo que estejam muito danificados. Se houver suspeita de que seja de uma destas espécies, podemos fazer procedimentos de biologia molecular, para ver o padrão genético do mosquito e confirmar se se trata ou não de uma espécie invasora”, explica.

À boleia num pneu ou num avião

As alterações climáticas vão ajudar estes mosquitos e as doenças que transmitem a instalar-se em Portugal? “Não tanto como são acusadas”, disse Carla Sousa. Cada espécie tem as suas características: o Aedes albopictus tem uma grande plasticidade ambiental, ou seja, tolera até temperaturas negativas. Já o Aedes aegypti não consegue sobreviver abaixo dos dez graus.

“Mas Portugal está mesmo no limite do que chamamos a adequabilidade climática para a espécie”, sublinhou a investigadora. Ou seja, ela consegue subsistir, mas não tão bem como nas regiões tropicais e subtropicais. E aqui, adianta, é que entram as alterações climáticas.

“Havendo invernos menos rigorosos, por exemplo, a nossa adequabilidade climática para o Aedes aegypti é capaz de estar a alterar-se de modo visível”, referiu Carla Sousa. Já o Aedes albopictus sente-se em casa, frisou: tirando, talvez, os picos de maior altitude, está confortável em todo o território continental.

A acção humana é que tem disseminado estas espécies de mosquito e as doenças que transmitem pelo mundo fora, salientou a cientista do IHMT. “É a mobilidade das pessoas que faz com que o vírus ande de um lado para o outro com muita facilidade, bem como o tráfego de mercadorias.”

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Amostras antigas de mosquitos Aedes aegypti no Laboratorio da Rede de Vigilancia de Vectores em Àguas de Moura Daniel Rocha

Há uma característica dos ovos dos mosquitos Aedes que facilita a sua expansão: sobrevivem vários meses completamente secos. Os pneus são um óptimo veículo para dispersar estes mosquitos, exemplificou. “É muito fácil a fêmea colocar os ovos, por exemplo, em pneus que muitas vezes estão expostos enquanto estão a ser empacotados para virem por transporte marítimo e acumulam água.”

O pneu é posto num contentor, muitas vezes vai para empresas de reciclagem e é acumulado ao ar livre, onde os ovos que secaram apanham água outra vez e eclodem, dando origem a uma nova população de mosquitos noutro local. “Na zona de Penafiel, a entrada do mosquito aconteceu assim”, contou Carla Sousa.

Outra via para se espalharem tem sido a das plantas ornamentais: “Está a ver aqueles bambus da sorte, aqueles pauzinhos com folhinhas verdinhas? Foram um dos meios de movimentação destes insectos entre áreas geograficamente muito distantes.”

Mas, claro, o mosquito também pode entrar num avião e vir viver connosco. Ou viajar no nosso carro. “Em 2017, quando fomos fazer a confirmação da presença do Aedes albopictus em Penafiel, tínhamos acabado de entrar no carro para regressar e eu disse ‘Esperem, vamos ver se não levamos mosquitos’. E estava realmente uma fêmea dentro do carro”, recorda Carla Sousa.

Estes mosquitos exploram muito bem o ambiente humanizado, alterado pelo homem. “Já encontrámos ovos de mosquito em garrafinhas de cerveja mini. Em caricas. Latas. Um saco de plástico amachucado, que faça pequenas depressões, onde se acumule um pouco de água, transforma-se num óptimo criadouro”, exemplifica a cientista. Em vasos de flores em locais públicos. Até numa pia de água benta numa igreja, imagine-se: “Dissemos ao senhor padre, naturalmente, que era melhor lavar aquilo e mudar a água benta com uma com mais frequência.”