Francisca van Zeller: “A Van Zellers e Co não tem esta solidez desde o século XIX”

A Van Zellers está hoje exclusivamente nas mãos de Cristiano Van Zeller e da família mais próxima. Nesta nova fase, a empresa quer posicionar os seus vinhos lá em cima e apostar nos tawnies velhos.

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Francisca van Zeller na adega da Van Zellers & Co em São João da Pesqueira Manuel Roberto

Os Van Zellers estão ligados ao comércio de vinho do Porto desde 1620. Por força da pandemia, mas sobretudo para relançar a empresa nesta nova fase, só este ano estão a comemorar esses 400 anos de história, com o Vintage de 2020, lançado há poucas semanas (parte do lote está mergulhado ao largo de Sines e ainda há-de ser apresentado) e três tawnies do século XIX, que sairão para o mercado no final do ano. Produzem, entre vinho do Porto ("o coração", diz Francisca, a mais velha de três irmãos) e DOC Douro ("a razão"), 60 mil garrafas por ano e exportam para "20 e tal" mercados.

A filha não via o vinho como um negócio, mas diz que sempre soube que queria trabalhar na área (aos dez anos, depois de ver o pai e o tio Álvaro vezes sem conta a fazer lotes na adega, disse que queria "cozinheira de vinhos"). Cristiano, o pai, percebeu, como "homem de grande fé e também de grandes dúvidas", mais tarde, mas ainda assim cedo. Bem antes desta nova vida da Van Zellers & Co, que aposta no posicionamento e na reconstrução de stocks. "Refazer uma empresa quase do princípio só fazia sentido se houvesse seguimento." Entrevistámos pai e filha no Douro e ficámos com poucas dúvidas de que assim seja.

Quem entra no site da Van Zellers & Co, lê “Atreva-se a ser um apaixonado por Vinho do Porto. Junte-se à viagem?” Que viagem é essa que propõem?
Francisca van Zeller: Quem entra em contacto connosco pode não saber quem é o Cristiano, a Francisca ou o João, mas há uma forma de estar que nós achamos importante que as pessoas sintam. Nós trabalhamos no início da Van Zellers & Co com a Matilde Barroso, que é uma prima minha afastada e é especializada em marketing e branding, e ela entrevistou-nos a todos. Percebeu que através do trabalho que já foi feito, nos 400 anos que temos de ligação ao Douro, que isto é sempre uma jornada, porque nunca está completa. Há sempre uma certa insatisfação, no sentido bom da palavra. Há sempre qualquer coisa que ainda se pode acrescentar. E a dimensão desta região imediatamente propõe isso, mas acima de tudo tem a ver com esta fome que nós temos de manter o Douro actual. Ainda há um caminho para se fazer, do Douro no mundo.

E em relação aos vinhos propriamente ditos, qual é essa proposta agora?
FVZ: Nas três categorias que ficaram definidas, a ideia é que cada um dos nossos vinhos reflicta o que é a jornada que o próprio vinho fez ou vai fazer. Os vinhos criados pela Natureza são os vinhos CV, branco e tinto, o LBV e o Vintage. Nos vinhos criados pelo Tempo é o que o tempo acrescentou ao vinho final, são os Colheita. A quantidade de tempo que eles estiveram em pipa vai definir o seu perfil, muito mais do que o ano de colheita em si ou a natureza naquele ano. E os vinhos criados pela mão do Homem reflectem a importância da diversidade de castas, diversidade de vinhas e do blend em si. São os 10, 20, 30 e 40 anos e os VZ, branco e tinto, que são uma composição das vinhas.

Não há vinhos correntes nessa proposta?
FVZ: Não, o nosso posicionamento é assumidamente alto e em quantidades muito limitadas. E por isso nós auto-limitamos aquilo que fazemos nos vinhos do Porto nos 10, 20, 30, 40 e o que que engarrafamos cada ano e o que engarrafamos em termos de colheitas. E todos os outros são naturalmente limitados pela produção das vinhas que temos, que são pequenas vinhas.

Cristiano van Zeller: No fundo, tem a ver um bocadinho com o que eu fiz ao longo do tempo no Douro e a necessidade e a vontade de criar condições para que o Douro se mostre no seu melhor e seja valorizado por forma a criar valor acrescentado em toda a cadeia de produção. Como é que isso se faz? É engraçado porque, quando nós começámos todo este desafio que foi o Douro no princípio dos anos 1990 – a Quinta do Crasto, o Vallado, o Vale Dona Maria, fui responsável pelo arranque dos três –, houve uma vontade de posicionamento, desde o primeiro minuto, dos vinhos do Douro, num mercado mais especializado. Nesses primeiros projectos, nunca aparecia aos clientes com uma lista de preços, aparecia sempre com uma lista de preços no ponto final ao consumidor. Era o posicionamento que era fundamental. E a partir daí construíam-se as margens dos diferentes parceiros.

E ainda hoje trabalha assim?
CVZ: Não. É preciso pensar que, nos anos 1990, quando eu arranco o projecto da Quinta do Crasto, não existia nada. É evidente que existem pioneiros no Douro, Barca Velha, Quinta do Côtto, Ramos Pinto, mas o Douro na prática era inexistente. Não havia dimensão no que respeita ao número de marcas e, sobretudo, marcas de qualidade. Não havia um posicionamento claro.

Era preciso fazer esse exercício?
CVZ: Esse tipo de exercício era fundamental. Hoje em dia isso foi deslocado para os Estados Unidos, mas nos anos 1990 a Inglaterra era a referência, não só a nível de imagem de vinhos, mas também de posicionamento de preço. Era fundamental fugir do daquilo que os ingleses chamavam cheap and cheerful. A revolução nos vinhos portugueses já estava a acontecer em várias regiões, com o João Portugal Ramos, o João Nicolau de Almeida e muitos outros. Mas esse posicionamento no que ao Douro diz respeito era fundamental. E, ao fim de algum tempo, a consequência desse posicionamento – cost is a fact, price is policy, não é? –, começou a definir-se uma lista de preços, passou a haver uma lista de preços normal.

Voltando à vossa proposta e às categorias de vinho.
CVZ: Neste momento, o nosso portfólio não está fechado. Vamos apresentar no fim deste ano os Reserva Tawny, Reserva Ruby e Reserva White. Vamos fazer a primeira apresentação dos nossos vinhos que temos do século XIX. A partir daí, ainda temos uma capacidade de crescimento muito importante e é esse o nosso foco principal nos próximos anos, a criação de valor e o posicionamento dos nossos vinhos como referência no Douro, no vinho do Porto e no mundo dos vinhos. Nós produzimos vinhos do Porto novos todos os anos e o benefício que nós temos neste momento é suficiente para as nossas necessidades, para agora e para o futuro. No entanto, esta nova fase da Van Zellers & Co partiu também de um grande investimento de refazer os stocks de vinhos, com um grande foco nos tawnies muito velhos. E esse é um investimento contínuo, anual, que nos permite manter um altíssimo nível de qualidade durante algum tempo. Esse esforço tem de durar algum tempo, até que os vinhos que nós vamos envelhecendo cheguem ao patamar de velhice que nós pretendemos. Daqui a cinco, seis anos, teremos alguma capacidade de crescimento nos Reserva Ruby, Tawny e White, no LBV e, no futuro, teremos capacidade de crescimento no Tawny 10 anos, assegurando um backup de stock muitíssimo importante, que é o que pretendemos neste momento.

Estamos a falar da capacidade de produção?
CVZ: Não, estamos a falar na capacidade de crescimento de vendas, porque com os stocks que temos – os investimentos começaram em 2017 –, a partir de determinada altura temos vinho para engarrafar e aumentar esses volumes.

Aumentar a área de vinha, arrendando ou comprando, está nos planos mais próximos?
CVZ: Tudo isso depende das oportunidades e da nossa capacidade financeira, têm de surgir as duas coisas ao mesmo tempo.

Que área têm actualmente?
CVZ: A área própria de vinha são 8 hectares, com a vinha arrendada são cerca de 15 hectares.

E compram uva?
CVZ: Muito pouco. Neste momento, compramos a três lavradores uvas brancas. E comprámos este ano pela primeira vez a dois lavradores uvas tintas. Já comprávamos a outro, que é o nosso encarregado geral desde sempre desde o tempo da Quinta Vale D. Maria. De área de vinha, um tem 6000 metros quadrados, os outros têm 1 hectare e 1 hectares e pouco.

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Cristiano van Zeller num dos dois armazéns onde a sua empresa tem a produção em São João da Pesqueira, no Douro Manuel Roberto

Nenhum dos vinhos velhos de que fala era stock da família?
CVZ: Não, as empresas vinho do Porto nunca produziram – a empresa era uma coisa, as vinhas eram outra – até ao final do século XIX, com excepção da Ferreira, que tinha produções próprias. A Quinta do Noval, do meu trisavô, só é adquirida em 1896, a empresa era de 1813. Todas as empresas vinho do Porto funcionavam nesse registo. E até aos anos 2000, em média, tinham cerca de 12% da produção das suas necessidades cobertas pelas vinhas próprias. E hoje em dia mantém-se em níveis muito semelhantes, diria que são 16%, 17%. Eu sabia onde é que estavam os vinhos, fartei-me de comprar vinhos velhos [no Noval]. Fui bater às várias portas e reconstrui um stock com base num estilo que eu conhecia e que foi a minha educação no vinho do Porto desde o primeiro dia.

Os tawnies velhos?
CVZ: Os tawnies velhos e o estilo de tawnies velhos. A invenção do 10, 20, 30 e 40 anos foi do meu bisavô nos anos 1920 na Quinta do Noval. A mesma coisa com o LBV nos anos 1940. Tudo o que era a minha experiência, a minha memória olfactiva e a forma como os vinhos eram construídos e aquilo que eles representam foi o que eu fui procurar.

Que vinhos velhos vão engarrafar este ano?
CVZ: Dos vinhos que temos do século XIX, vamos lançar cerca de 100 garrafas de cada um dos três das 3 colheitas, 1860, 1870 e 1888, que não podem ter data de colheita na garrafa, porque não têm registo como tal no Instituto do Vinho do Porto. São os três muito diferentes e já temos idealizada uma forma engraçada de fazer uma referência às diferenças entre cada um.

FVZ: No fundo, vamos ter um portfólio estanque depois de entrarem os Reserva. Sabemos todos os anos com o que podemos contar e depois teremos lançamentos especiais, muitas vezes através de colaborações. Nós temos uma colaboração com uma marca de sapatos que é Zouri Vegan Shoes, que está a fazer a caixa em forma de concha onde vai ser vendido o Vintage 2020, as garrafas que estão a envelhecer debaixo de água. Eles só trabalham com plásticos recuperados das praias, das nossas costas. E essa relação com o mar e com a marca era óbvia.

Quantas garrafas são essas e onde estão?
FVZ: Estão 102 garrafas mergulhadas, em Sines, na Adega do Mar, do Joaquim Parrinha. Vamos emergi-las no dia 8 de Junho, depois de seis meses, e vão ser vendidas 30 numa plataforma de NFT [non-fungible token; em português Tokens Não Fungíveis] ​e as restantes disponibilizadas ao mercado.

E os preços destes vinhos?
FVZ: Em NFT vamos posicionar o Vintage 2020 a 700 euros a garrafa. Depois o mercado livre há-de funcionar, por isso, em termos de PVP há-de rondar a mesma coisa. O século XIX é uma discussão ainda, mas haveremos de apontar para os 30 mil euros o pack das três. Vamos fazer 75 packs. E depois vamos fazer uma oferta paralela, a partir de Janeiro do próximo ano, de uma só garrafa, da colheita mais antiga. São 100 de cada ano, que vão estar disponíveis ao longo do tempo, sendo que vai ser inicialmente uma oferta de 75, no tal pack.

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A Van Zellers & Co lançou há semanas o seu vinho do Porto Vintage de 2020, que marca os 400 anos da família no negócio do vinho generoso do Douro Manuel Roberto
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A partir do momento em que deixa a Aveleda, em 2020, Cristiano van Zeller começa a estruturar a equipa da "nova" Van Zellers & Co. Durante a pandemia, fez de tudo, desde "engarrafar a rotular" Manuel Roberto

CVZ: Com vinhos desta raridade não faz sentido ser comedido no preço. Não vale a pena ter vergonha nenhuma de posicionar e esperar que todos os outros que possam vir a seguir façam a mesma coisa, não é?

Os Van Zellers têm 400 anos de história no negócio do vinho do Porto, mas a empresa actual é de 2020. Como foi construir esta fase actual?
CVZ: No fundo, no Natal de 2006, quando a Van Zellers & Co como empresa me é oferecida – era um papel –, pelo meu primo João van Zeller, esse é um começo lento. O CV já existia, o VZ recomeçou nessa altura e fomos lançando alguns vinhos do Porto ao longo do tempo. Esta é verdadeiramente a primeira vez, desde a venda da empresa no século XIX, em que nos dedicamos 100% à Van Zellers & Co. Desde Janeiro de 2021, porque eu em 2020 ainda estive até ao fim do ano, na Quinta da Aveleda.

Antes, a Van Zellers & Co partilhava recursos…
CVZ: Havia uma partilha de tudo. Tudo o que era produção, vinificação, armazenagem, estava englobado na Quinta da Aveleda desde 2017. A empresa era nossa e existia um acordo que, enquanto eu estivesse como executivo na Aveleda, até 1 de Julho de 2020, era o contrato, a Van Zellers trabalharia dentro da Quinta da Aveleda.

Nesta nova fase, houve aquisição de alguma vinha?
FVZ: De todas as vinhas, excepto a do CV. Alguns clientes também já eram existentes, mas foi preciso reactivá-los. Apresentar-lhes o novo caminho da Van Zellers & Companhia. Acima de tudo é isso, a Van Zellers e Companhia não tem esta solidez desde o século XIX. E agora apresenta-se sólida, muito focada, com posicionamento muito definido e isto facilita muito o trabalho.

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Para Cristiano van Zeller, "refazer uma empresa quase do princípio", como fez nos últimos dois anos com a Van Zellers & Co, "só fazia sentido se houvesse seguimento". Francisca e o irmão João trabalham com o pai, nesta nova fase da empresa centenária Manuel Roberto

A decisão de alienar a Quinta Vale D. Maria foi já no sentido de alavancar este sonho?
CVZ: É engraçado. A história dá muitas voltas. A primeira vez que eu falei com os meus primos da Aveleda sobre fazermos um projecto no Douro em conjunto foi três dias depois de entrar na Quinta Vale D. Maria. Em 1996. E na altura, por razões várias, os meus primos acharam, por razões várias, que não havia condições para que isso acontecesse.

Na Quinta Vale D. Maria nunca foram então sócios?
CVZ: Não, nunca fomos sócios. Mas nessa altura a Quinta Vale D. Maria era totalmente independente. Em 2011, quatro amigos meus entram na Quinta Vale D. Maria como sócios para me apoiarem na retoma e no crescimento da Quinta Vale D. Maria: Paulo Azevedo. Ângelo Paupério, meu colega de curso, António Lobo Xavier, meu amigo da adolescência, e Carlos Moreira da Silva. Os quatro foram accionistas e tiveram um papel fundamental no desenvolvimento da quinta e das marcas. Entretanto, nós tínhamos feito um acordo: a partir de determinada altura eles sairiam, era um acordo provisório. E a primeira conversa que tenho com os meus primos da Quinta da Aveleda não foi por causa da Quinta Vale D. Maria, foi por causa da Van Zellers & Companhia, que é o nosso elo familiar. E o resultado final foi o contrário daquele por onde tinham começado as conversas. As conversas nesses casos têm que ser totalmente abertas e sem reservas, como sempre foram. Para a Aveleda é mais importante o investimento na Quinta Vale D. Maria, fica a Van Zellers de fora. E é a partir desse momento que, em vez de fazer o projecto que eu tinha para a Van Zellers & Companhia dentro da Quinta da Aveleda, o desenvolvo à parte.

Isto precipitou-se por causa dessa…
CVZ: Não. Termos ficado com a Van Zellers & Companhia é um passo natural daquilo que estava programado no tempo sem tempo. Eu gosto dos timings, mas no mundo do vinho a rigidez só dá asneira. É preciso tempo para criar vinho, para o envelhecer, para o vender, para o posicionar, etc. Nas empresas de vinho do Porto, o tempo mínimo de pensamento é sempre uma geração. Quem pensa a menos que isso está enganado.

Os vinhos da Quinta Vale D. Maria estiveram muitos anos na exigente lista dos melhores vinhos do Douro. A fasquia é essa com o actual projecto?
CVZ: É igual. Mas o CV também está, esteve sempre. Mas nós, o Douro como um todo, temos um desafio brutal à nossa frente, é que os grandes vinhos do Douro, sobretudo aqueles que são de volumes mais pequenos, que são quase todos, ainda não tem uma valorização a nível internacional condizente com aquilo que representam. Nos anos 2000, nós criamos os Douro Boys, convidámos vários produtores do Douro espanhol e fizemos uma brincadeira que chamamos de Douro Duero: o Pingus, o Mauro do Mariano García, Telmo Rodríguez. Os Douro Boys mantêm-se como grupo 20 anos depois, o Douro espanhol nunca foi um grupo, nós é que os agregávamos na prática. Mas nós temos preços na prateleira entre 10% e 50% mais baratos que os mais baratos deles.

Apresentam-se como uma família em constante reinvenção. Queria perguntar como vêem a empresa daqui a algum tempo?
FVZ: Eu gosto muito de ver que ainda há uma geração interessada em vinho do Porto, porque isto é um negócio que barra muito ainda a entrada jovens produtores. Não é coincidência que existam cerca de 30 comerciantes de vinho do Porto. Significa a que há poucas pessoas dedicadas ao negócio, considerando o peso que o vinho do Porto tem na dimensão dos vinhos portugueses no mundo. Para haver futuro no vinho do Porto, esta aposta no premium e no posicionamento é fundamental. E gosto de ver que não estou sozinha, nem eu, nem meu pai, nessa forma de pensar, que existem outras pessoas novas dedicadas ao negócio que estão preocupadas em perceber como é que o Vinho do Porto se mantém relevante.

Esse é o ambiente em que vocês desejam continuar neste negócio, mas na família como é que imaginam o futuro?
FVZ: Com dinamismo. Com um portfólio sempre estável, que todos os nossos clientes saibam que podem contar com isso, mas que também podem vir ter connosco e serem surpreendidos com novidades. O sangue novo – e o meu pai tem muito sangue novo, não tem a ver com a idade – é fundamental para manter este negócio vivo, manter a empresa viva.

Isso está relacionado com as colaborações de que falava?
FVZ: Sim, uma delas vai ser esta que vamos lançar agora, mas depois temos muitas ideias que não vale a pena… são só ideias, ainda não saíram do papel. Eu estudei História, porque eu queria inicialmente estudar vinhos mas o meu pai disse: vá aprender história, vá ver o mundo, porque é muito importante ter outra visão sobre aquilo que fazemos. Eu trago outra visão, o meu irmão [João] traz uma ainda mais diferente. Ele tem um carisma gigante, imediatamente atrai as pessoas na sua forma de comunicar. E isso é uma sorte.

Como é que vocês dividem trabalho?
FVZ: Ele dedica-se ao mercado nacional e à abertura de novos clientes ou abertura de novas referências em clientes existentes. Ele funciona como embaixador no mercado nacional.

CVZ: Ele está mesmo a arrancar agora.

FVZ: Exacto, vamos pôr pouca pressão já. Eu faço a parte de comunicação, marketing e dedico-me aos mercados externos. Estava, aliás, a dizer ao meu pai que faltam poucos clientes para eu ficar 100% responsável por essa área, para o meu pai se ficar essencialmente à produção.

Já percebi que é boa provadora. Vê-se um dia a fazer a enologia?
FVZ: Sim, sem dúvida. Eu aproximei-me muito desta parte de viticultura e enologia durante os anos que estivemos no Vale D. Maria, depois afastei-me na Aveleda [onde teve funções de marketing e gestão de marca e hoje tem a pasta da sustentabilidade], o que é natural, é uma empresa grande e muito mais segmentada. Agora, por força das circunstâncias familiares, também não consigo aproximar-me tanto, mas sem dúvida que isto é um calling muito grande.

CVZ: Enquanto a técnica de fazer vinhos do Douro é muito mais fácil de agarrar, aquilo que é a memória olfactiva e histórica do vinho do Porto e a forma de gerir o vinho do Porto, há muito pouca gente que sabe. Eu tenho conseguido transmitir isso e espero ainda viver tempo suficiente para transmitir isso aos meus filhos.

Vocês vêem-se como uma família produtora de vinho do Porto ou como uma família do DOC Douro?
FVZ: Como uma família do Douro.

CVZ: Uma família do Douro que é do vinho do Porto mas que faz todo o percurso. O vinho do Porto só é chamado vinho do Porto em 1675. Nos primeiros anos, não se chamava vinho do Porto. Até ao princípio do século XIX nem era feito da mesma maneira que é feito hoje em dia. Embora eu tenha nascido no Porto, a minha avó nasceu no concelho de São João da Pesqueira, em Valongo dos Azeites, a família do meu avô, pai da minha mãe, é de Vila flor desde incontáveis gerações. Da parte Van Zellers, toda a vida estivemos ligados ao Douro.

Mas isso para dizer…
CVZ: Entre les deux, mon cœur balance. Não lhe sei dizer. Hoje em dia, dá-me muito mais gozo o vinho do Porto, é um desafio muito maior do que o DOC Douro.

Pareceu-me que a Francisca ficou surpreendida com o “não sei” do pai.
FVZ: O vinho do Porto toca-me muito mais ao coração do que o DOC Douro. Se pensarmos numa maratona, o DOC Douro é aquele que tem ao quilómetro 17, quando todos começam a quebrar, tem que ter a cabeça no lugar para continuar a correr. O DOC Douro é a cabeça. O vinho do Porto é o coração, é o ânimo de nunca deixar de fazer maratonas.

CVZ: É uma boa explicação. Eu não saberia dizer melhor.

Queria perguntar-vos como estão a trabalhar a sustentabilidade.
FVZ: O Luís Cardoso Menezes é o nosso responsável de viticultura. Quando eu voltei a entrar na empresa, perguntei-lhe como é que estávamos a trabalhar a vinha. E o Luís disse-me: sabes, sempre que vejo um cavalo paro e com o dono do cavalo, porque ele tem muito para ensinar. Voltar a estas práticas antigas tem essencialmente a ver com aquilo que se fazia bem na reestruturação do solo, na preservação dos minerais do solo, e como isso foi alimentando a vinha. Fez-se muita asneira com os herbicidas e os pesticidas, porque matámos muita da flora natural, muito dos insectos, todo o meio ambiente que existia à volta da vinha. Agora, é a reestruturação de tudo isso. Para além de revertermos [as vinhas] para a cava, descava e redra, este trabalho que se faz com o macho [que procuram para trabalhar a terra]…

No vosso caso, estão a preparar as vinhas para a agricultura regenerativa, certo?
FVZ: Sim, o nosso caso, é a viticultura regenerativa, que começa acima de tudo no solo. Abrimos canais dentro do solo, para criar ar e para criar uma zona onde há ervas durante todo o Inverno, que depois são mergulhadas para dentro do solo.

Vocês fazem estudos de solos? Desde quando?
FVZ: Fazíamos há muitos anos, mas o registo que agora nos interessa é desde 2021. A transmissão dos minerais para a planta não é matemático. Se eu procurar [ter mais] fósforo, eu não vou, necessariamente, plantar ervas que aportam mais fósforo, porque o fósforo só é consumido se existirem outros minerais dentro do solo. É um trabalho bastante complexo.

Também olham para a disponibilidade hídrica nesses estudos?
CVZ: A água é a da chuva mesmo. Mas eu posso dizer uma coisa: se nós não tivéssemos lavrado e feito esse trabalho de solo, no Inverno de 2022 a pouca chuva que caiu durante o ano, que foi totalmente absorvida pelo solo, tinha escorrido. Muitos solos estavam compactados. É importantíssimo esse trabalho de solos para a retenção de água. Uma redra vale mais que uma boa rega. E a redra é partir da capilaridade dos solos no verão, a seguir ao pintor, para permitir a retenção de humidade no solo.

FVZ: E no CV, onde temos registos, estamos a fazer um trabalho adicional que tem a ver com a preservação do pé de vinha. Fazemos um trabalho que se chama corretagem, que é limar a planta de todas as suas necroses, porque as necroses funcionam como abrigos para infecções, de formiga-branca por exemplo. Não aportam nada à planta nem à vinha, são pragas.

Parece um trabalho de filigrana.
FVZ: É totalmente um trabalho de filigrana, é espectacular. Primeiro ainda foram procurar o tipo de utensílio adequado à vinha e descobriram que o mais adequado até o que faz a limpeza das patas dos cavalos. É um gancho que não fere totalmente a planta, mas que a limpo. É impressionante, a vinha velha parece que ganha vida. A maior parte dela está morta, só a planta mesmo lá dentro é que está viva, por isso quando a limpamos de todas essas necroses a planta volta a ficar minúscula. Está exposta a toda a absorção do seu meio ambiente e estamos a fazer diferentes testagens com tratamentos da aloé vera, por exemplo.

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Nas vinhas velhas, a Van Zellers & Co está a fazer corretagem, uma técnica que consiste em limar as videiras de todas as suas necrosas. A vinha ganha outra vida e melhora a sua produção Manuel Roberto

Isso em concreto é uma prática na regenerativa?
FVZ: Não é uma coisa documentada, não há passos dentro da viticultura regenerativa totalmente obrigatórios. Não é uma certificação. É uma forma de pensar. Em Châteauneuf-du-Pape​ fazem isto [a corretagem], mas, de toda a minha investigação, não é muito comum. O Douro preza muito as suas vinhas velhas e é algo que estamos a testar. Aproveitamos a poda, é nessa altura, e nós temos capacidade de fazer uma vinha por ano. A vinha do CV está quase toda. E vamos continuar por outras vinhas fora. Supostamente aumenta ligeiramente a produção. São os dois objectivos, mas acima de tudo é dar mais longevidade. Porque, para se preservar a característica daquela parcela, é preciso que as vinhas e aquelas castas existam daquela forma. É preservar aquele vinho.

E como é que vocês se propõem receber pessoas? Já percebi que não lhe chamam enoturismo.
FVZ: Para nós chamam-se experiências, faz parte da viagem que queremos que os consumidores façam com a Van Zellers. É ter a oportunidade de contactar connosco, de provar os nossos vinhos e de nos visitar. Estamos agora a montar o projecto de jantares em casa, no Porto. São grupos muito restritos, no máximo, são 8 pessoas, e jantam connosco. Com a minha mãe e com o meu pai, eu não estou tanto. Cada um dos menus, Crafted by Hand, Crafted by Time e Crafted by Nature, está desenhado para fazer pairing com os vinhos dessas categorias. Depois, teremos uma casa aqui aberta para receber pessoas só em provas e almoços.

Na vinha de Adorigo?
FVZ: Não é uma vinha. Mas sim, é na casa de Adorigo. Não tem nome ainda, mas chamamos-lhe assim. Teremos uma vinha visitável, com várias castas. O projecto está aprovado e, se tudo correr bem, a construção estará pronta a tempo da vindima de 2024. Ainda não teremos a vinha, que vai demorar mais do que a própria construção. Tem projecto aprovado, estamos na fase de recrutar empreiteiro e a construção é toda sustentável, será modelar, com painéis solares e aproveitamento das águas da chuva. É suposto ser auto-sustentável. E lá estamos a trabalhar já com uma arquitecta paisagista num jardim aromático. Nós demos-lhe os aromas que existem no vinho e que podem ser experimentados em arbustos, árvores de fruto e flores, e ela desenhou-nos um jardim em que nós podemos ir colher ou experimentar os aromas ali mesmo no jardim.

E na vinha onde estivemos esta manhã, em Valença do Douro?
FVZ: Esse projecto talvez seja para os meus filhos. A casa. Temos um projecto de uma casa, para alugar por inteiro. Mas ainda está em planta, é muito cedo para falar sobre isso. Entretanto desenvolvemos outras experiências. O nosso intuito é que as marcas nos contactem para criação de experiências e haja parcerias dessa forma. Não queremos estar sempre a fazer provas de portefólio. Queremos criar discussão.

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