Trotinetas: quem anda “à grande e à francesa” nas nossas cidades?

A confusão generalizada entre um atropelamento e um acidente de trotineta é sintoma de que ainda vivemos em cidades nas quais o automóvel é central e os seus abusos estão completamente normalizados.

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Trotinetas Nuno Ferreira Santos

2023 começou com a terrível notícia de que dois jovens foram vítimas de um acidente enquanto se deslocavam em trotineta no Porto, tendo um deles vindo tragicamente a falecer, e o outro ficado em estado grave. Como mais tarde se veio a perceber, este episódio não foi um mero acidente de trotineta, mas sim um atropelamento, mais um (em 2021, foram quase 4 mil em todo o país), neste caso causado por um condutor altamente alcoolizado.

Entre a narrativa veiculada nas notícias e a realidade, houve um desfasamento grave que acaba por alimentar a perseguição pública que se instalou em relação a este meio de mobilidade suave. O que se leu nas manchetes sobre o grave “acidente de trotineta”, que serviu até para se dizer que as trotinetas são uma “epidemia”, não corresponde à verdade. Devia ter sido noticiado, sim, o atropelamento destes dois jovens.

A forma como falamos destes assuntos não é neutra. A confusão generalizada entre um atropelamento e um acidente de trotineta é sintoma de que ainda vivemos em cidades nas quais o automóvel é central e os seus abusos estão completamente normalizados. Neste caso, para o leitor incauto, a mensagem facilmente dá a impressão de que foram estes jovens que foram irresponsáveis e, porque iam em trotineta, provocaram um acidente.

Mas, como este, há outros exemplos deste preconceito estrutural: na sua campanha de divulgação do regulamento de utilização de trotinetas e bicicletas na cidade, a Câmara Municipal do Porto utiliza frases como “Não é à grande e à francesa!” e “Não é tudo teu, é tudo nosso!” Este tipo de comunicação é estigmatizante. Em vez de incentivar o uso de meios suaves, que em contexto de crise climática e de caos diário no trânsito deveria ser estimulado, aponta os seus utilizadores como irresponsáveis inimigos públicos. Onde está a propaganda contra o uso do automóvel e o alerta contra a condução irresponsável que motiva, aí sim, números chocantes de acidentes não poucas vezes com consequências trágicas?

Sendo estes modos suaves de mobilidade na maioria dos casos utilizados através de plataformas de partilhas, isso traz naturalmente consigo novos desafios. O estacionamento desregulado nos passeios, por exemplo, torna-se por vezes uma inaceitável barreira à mobilidade, em particular para pessoas cegas ou com dificuldades de locomoção – já agora, o mesmo se deve dizer do estacionamento ilegal por automobilistas, ainda tão frequente, ou das ruas que para permitir a passagem de automóveis reduzem os passeios a uma largura mínima.

Felizmente, a experiência de várias cidades europeias e mundiais demonstra que estes problemas podem ser ultrapassados com regulação e principalmente com investimento em infra-estrutura e urbanismo. Com uma rede de ciclovias de qualidade e que garanta a segurança de quem as usa — ao invés de meia dúzia de pinturas desconexas no chão acompanhadas por mecos de plástico — deixa de haver a necessidade de circular com trotinetas e bicicletas em estradas e passeios (opção incontornável para quem legitimamente não se sente seguro junto dos carros). A redução do limite de velocidade para 30 km/h dentro das cidades é outra solução que tornaria as ruas mais seguras para todos e todas. Não faltam medidas políticas para fazer caminho no sentido de uma cidade que promova modos alternativos de mobilidade protegendo as pessoas — jovens e adultos — que, felizmente, tomam essa opção.

As trotinetas e as bicicletas não são brinquedos para "arruaceiros" que gostam de se pôr em risco a si próprios e aos outros, nem entretenimento para perigosos turistas radicais. São meios suaves de transporte, altamente eficazes e necessários para o futuro colectivo sustentável que devemos almejar.

Pode haver quem as utilize de forma abusiva (como de resto existe na utilização de qualquer tipo de veículo), mas somos cada vez mais a utilizá-las adequadamente para as nossas deslocações diárias, seja através de serviços de mobilidade partilhada ou da aquisição de veículos próprios. Afinal, efectivar a revolução na mobilidade das cidades de que tanto precisamos depende de escolhas políticas: vamos alimentar a discriminação e manter o carro no topo, "à grande e à francesa", ou vamos ousar inverter a pirâmide?

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