Marrocos, uma selecção feita na diáspora

Mais de metade dos convocados do adversário de Portugal nos quartos-de-final do Mundial nasceu noutros países.

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Hakimi é uma das "estrelas" da selecção de Marrocos EPA/Mohamed Messara

Achraf Hakimi tinha apenas 17 anos quando recebeu a chamada para representar a selecção principal de Marrocos. Em poucos meses, tinha ido de internacional sub-17, sub-20 e sub-23 a internacional A pelos “Leões do Atlas”, ele que era um entre muitos jovens a despontar no Castilla, a equipa de reservas do Real Madrid, sem um minuto que fosse pela equipa principal dos “blancos”. Espanha bem tentou, convocando-o para um estágio em Las Rozas, centro de estágio da “roja”, mas Hakimi, que nasceu e cresceu em Madrid, sempre sentiu que devia a sua lealdade futebolística ao país dos seus pais, não ao país onde nasceu. Com uma “panenkada”, Hakimi eliminou a Espanha do Mundial e manteve Marrocos como a única selecção não europeia ou sul-americana em competição.

O lateral-direito do PSG é um bom ponto de partida para tentar mostrar que selecção é esta a que vai defrontar Portugal no próximo sábado nos quartos-de-final do Mundial 2022. Hakimi é um dos 14 jogadores da selecção marroquina (em 26) que não nasceram no país que representam no Qatar – tal como o seleccionador Walid Regragui, que nasceu num subúrbio de Paris, mas também ele internacional A por Marrocos e com carreira de treinador feita neste país do norte de África.

Esta é uma regra de todas as selecções africanas que estiveram neste Mundial (todas elas com treinadores africanos, o que é inédito), aproveitar o talento nascido nas respectivas diásporas e com formação no futebol europeu. Muitos deles foram internacionais jovens pelos países onde nasceram, mas, por uma razão ou por outra, escolheram Marrocos como o seu país de futebol. Não foi o caso de Hakimi, que nunca esteve nas equipas jovens de Espanha porque “não se sentia em casa”, como declarou numa entrevista recente à Marca. “Não era o que eu tinha em casa, cultura árabe e marroquina. Queria estar aqui.”

Bem diferente foi, por exemplo, o caminho de Hakim Ziyech até à selecção de Marrocos. O extremo do Chelsea nasceu nos Países Baixos e por lá fez a sua aprendizagem futebolística. Começou a destacar-se no Heerenven, depois no Twente, e foi chamado aos sub-20 neerlandeses. Em Maio de 2015, o seu nome esteve numa lista de 30 jogadores para dois jogos particulares, mas lesionou-se e não compareceu. Em Setembro, aceitou o convite de Marrocos e nunca olhou para trás. Ou melhor, esteve quase para não ir ao Mundial, por não se entender com o então seleccionador Vahid Halihodzic, mas a substituição do bósnio por Regragui fê-lo mudar de ideias.

Esta selecção de Marrocos tem jogadores nascidos em Espanha (Hakimi, Munir), Países Baixos (Ziyech, Mazraoui, Amrabat, Aboukhal), França (Saiss, Boufal), Bélgica (Chair, Amallah, El Khannous, Zaroury), Canadá (Bono, o guarda-redes que foi herói com a Espanha) e Itália (Cheddira). E Regragui deu-se ao luxo de deixar de fora um jogador que também se esforçou por jogar na selecção marroquina, Munir El Haddadi, uma eterna promessa adiada da formação do Barcelona, nascido em Espanha de pai marroquino. El Haddadi chegou a jogar uma vez na “roja” e era elegível para representar Marrocos no Mundial, mas, simplesmente, não teve lugar.

A prospecção pela diáspora marroquina no mundo (que se estima ser cerca de cinco milhões de pessoas) ganhou força nos últimos dez anos, como se vê pelas três últimas presenças de Marrocos em fases finais do Mundial. Em 1998, apenas dois dos 22 convocados não nasceram em Marrocos, mas, no Mundial da Rússia em 2018, os jogadores da diáspora eram praticamente dois terços da equipa (16 em 23), uma proporção mais ou menos semelhante na lista de 2022. Na equipa de 2018, esteve um português, Manuel da Costa, nascido em França de pai português (de Cucujães) e mãe marroquina (de Casablanca). O central chegou a representar as selecções jovens de Portugal, mas, como sénior, optou por Marrocos.

Jogar pelos avós

Hakimi teria dado muito jeito a Luis Enrique na “roja” – as suas opções para lateral-direito eram Carvajal, Azpillicueta e Llorente, nenhum deles com qualidade e no momento de forma em que está o homem do PSG, a atingir a plena maturidade competitiva aos 24 anos. Quando estava na formação do Real, tinha uma alcunha neutra, sem sonoridade árabe “Arra”, mas, como contou um artigo do The Athletic, chegou a ser impedido de alinhar pelo Castilla porque a FIFA pensava que ele era um jogador estrangeiro e isso era contra os regulamentos do organismo.

Se, para alguns destes jogadores recrutados na diáspora, a selecção de Marrocos foi o espaço possível para poderem ser futebolistas internacionais porque nunca chegariam à selecção francesa, espanhola ou belga, para o madrileno Hakimi, Marrocos foi sempre a única opção. “Jogamos pelos nossos avós e pelos avós deles”, contou numa entrevista à revista Vogue publicada num número em que esteve na capa. “Jogamos por milhões de marroquinos.”

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