Por um cooperativismo habitacional do século XXI

A Lei de Bases de Habitação abre novas possibilidades de operacionalização do movimento cooperativo habitacional que devem rapidamente ser prosseguidas.

Somos uma rede de associações, cooperativas e grupos informais de pessoas que tem vindo a discutir os contornos da crise de habitação. Temos estudado e participado nos debates e experiências que se somam pela Europa em que o modelo cooperativo surge como uma resposta na produção de habitação acessível, ecológica e não especulativa.

Portugal vive atualmente uma grave crise de habitação, problema estrutural na economia e sociedade portuguesas, mas que se tem agravado muitíssimo na última década. O modelo imobiliário especulativo promovido nos últimos anos, a turistificação sem freio dos centros urbanos e os regimes de captação de investimento orientado para os segmentos habitacionais de luxo, conduziu a que Portugal liderasse a zona euro na subida de preços da habitação dos últimos anos.

Entre 2015 e 2020, o Índice de Preços da Habitação aumentou 68,8% (Eurostat 2022) e, no final de 2021 Portugal ocupava o primeiro lugar em mais de 30 países no rácio entre preço-rendimentos da OCDE. Isso significa que os preços estão desajustados em relação aos rendimentos da esmagadora maioria de quem vive e trabalha nas cidades, e vocacionados para a especulação e para a procura de pessoas de elevados rendimentos.

Para largos segmentos sociais, os custos de habitação levam uma parte cada vez maior do rendimento disponível. A taxa de esforço relativamente às despesas com habitação é cada vez maior. Empobrece-nos. Obriga a processos de relocalização habitacional e retira-nos a possibilidade de continuar a viver em áreas relativamente centrais das nossas cidades. Se a habitação sempre foi uma dimensão importante de desigualdades em Portugal, hoje essa desigualdade volta a atingir níveis inaceitáveis, com os custos da habitação a atingirem valores verdadeiramente proibitivos. Este retrato habitacional resulta em cidades cada vez menos equilibradas e sustentáveis — social, ecológica e economicamente e, portanto, menos justas.

Por isso, queremos ser claros. O restabelecimento de um modelo cooperativo de produção de habitação deve ser uma prioridade nas políticas públicas nacionais e municipais. Não só o defendemos, como nos inscrevemos na construção de novos modelos cooperativos, na qual identificamos os seguintes princípios comuns:

  1. Queremos mais cooperação. Como os melhores exemplos na Europa mostram, as cooperativas prosperam quando se apoiam mutuamente e não quando concorrem umas contra as outras. O papel de Estado é incentivar e apoiar estes processos e não aplicar-lhes regras de mercado concorrencial que são o oposto da lógica cooperativa.
  2. Queremos construir projetos cooperativos em propriedade coletiva e/ou em direito de superfície de longo termo de propriedade pública. Aprendemos com as experiências cooperativas anteriores que, após a construção em modelo cooperativo, este se desfaz e as habitações passam a ser tratadas como mercadoria. Sabemos que a propriedade coletiva é a única garantia contra a especulação imobiliária, porque permite criar um stock de habitação acessível que não é depois encaminhado para o mercado especulativo, mantendo a gestão e manutenção do parque habitacional na esfera cooperativa. É um modelo de propriedade cujos benefícios não se esgotam no momento da construção, contribuindo para um combate sustentado às desigualdades na habitação e a própria democratização da cidade, funcionando como multiplicador de laços comunitários e coesão social.
  3. Queremos que o Estado, Governo e autarquias participem nestes processos cooperativos destinando financiamento público e bolsas de terrenos ou propriedades públicas disponíveis, sempre que os modelos cooperativos também possam dar uma resposta a carências habitacionais para as quais não há resposta ou esta é insuficiente por parte do mercado.
  4. Queremos o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana e os departamentos de urbanismo/habitação dos municípios a trabalhar com as cooperativas para acelerar processos, apoiar as iniciativas e desenvolver modelos de implementação céleres e eficientes. À semelhança de outros momentos na história da nossa democracia, o Estado deve criar serviços ou gabinetes próprios nas instituições públicas que apoiem o movimento cooperativo de habitação ou inquilinato.
  5. Queremos criar modelos económicos de produção de habitação de cariz não lucrativo, assegurando a sustentabilidade financeira, que possam ser replicados e/ou que criem reservas para apoio a outros projetos de habitação acessível, fazendo cumprir a função social da propriedade, tal como prevista na Lei de Bases da Habitação.
  6. Queremos que a banca pública, cooperativa e mutualista apoie e colabore com as cooperativas, não as tratando como mais um investimento imobiliário ou prejudicando-as pelo seu carácter não lucrativo, promovendo incentivos a projetos de reabilitação de baixo custo.
  7. Queremos que se constituam e mapeiem Fundos de Terras Comunitárias do inglês “Community Land Trust, cooperativas sem fins lucrativos que desenvolvem e administram habitação cooperativa, mas também empregos acessíveis, espaços verdes comunitários, edifícios cívicos, espaços comerciais e outros equipamentos da comunidade em nome de um bem comum e coletivo, privilegiando este paradigma na política pública de solos, em detrimento dos fundos imobiliários.
  8. Queremos criar projetos abertos a todas as pessoas e organizações, com diversidade social e etária, que se construam a partir das realidades locais e das comunidades, de baixo para cima. Que sejam uma resposta de base, instruída a partir de modelos participativos, enriquecidos pela assessoria técnica e científica.
  9. Queremos disputar o centro da cidade ao rural. Cidades e vilas que empurram a habitação acessível para as periferias, reservando o centro para os modelos especulativos, criam cidades e comunidades desequilibradas e desiguais, com componentes injustas de segregação. Queremos participar no processo de requalificação do património edificado, participar na sua consolidação e promover a diversidade e inclusão em todos os espaços da cidade, com base num planeamento urbano de proximidade.
  10. Queremos arquitetura e construção de qualidade, modelos habitacionais ecológicos a preços justos e não especulativos. Arquitetura habitacional que responda às exigências da crise climática, com consciência e responsabilidade social e ambiental.
  11. Queremos um novo movimento cooperativo habitacional livre dos espartilhos da mercantilização e financeirização da habitação capaz de promover formas de habitar acessíveis, plurais, ecológicas e de qualidade.
  12. Queremos uma economia urbana salutar. A habitação a custos acessíveis não é apenas necessária às famílias, à emancipação dos jovens e à sua fixação em Portugal. É também essencial à produtividade das empresas e da própria cidade, a qual depende de quem nela vive e trabalha.
  13. Queremos que a habitação cooperativa seja articulada com outras medidas que dêem resposta a diferentes necessidades e segmentos. E que seja acompanhada de medidas, fiscais e outras, que combatam a especulação, tornando a habitação de luxo (determinável pela dimensão dos fogos) num investimento menos aliciante.

A nova Lei de Bases da Habitação aprovada em 2019 reconhece a capacidade de as cooperativas terem um novo papel na produção de habitação não lucrativa ou não mercantilizada. Prevê, de forma clara, a relação entre Estado e cooperativas de habitação, as formas de incentivo e apoio público (art.º 55) e o papel dos municípios no apoio aos projetos cooperativos, onde se inclui “a participação das cooperativas e dos moradores nas decisões sobre a política de habitação” (art.23º).

A Lei de Bases de Habitação abre novas possibilidades de operacionalização do movimento cooperativo habitacional que devem rapidamente ser prosseguidas, designadamente:

a) Promovendo e gerindo habitação pública, prevendo-se a cedência a cooperativas de terrenos ou imóveis públicos para fins habitacionais sob a forma de direito de superfície (n.º 2 do art.º 27);

b) Privilegiando o setor cooperativo na produção de habitação própria a custos acessíveis e sem fins lucrativos (n.º 3 do art.º 46);

c) Garantindo que o Estado criará um regime legal de propriedade resolúvel para habitação, preferencialmente dirigido ao setor cooperativo ou social (n.º 1 do art.º 50).

Acompanhamos com interesse e expectativa as inúmeras declarações que vários responsáveis políticos da esquerda à direita, do governo às autarquias têm vindo a fazer em defesa de um novo modelo de cooperativismo habitacional. Importa agora passar das palavras aos atos, da teoria à ação. Em comparação com outros exemplos europeus, já estamos a partir tarde e temos pouco tempo. Desejamos que se perca menos tempo a discutir burocracias várias e que os nossos representantes que exercem funções públicas ouçam e ajudem a viabilizar os projetos que existem ou que vão sendo criados.

As cooperativas são uma resposta do presente à crise de habitação e de quem, hoje, se dispõe a construí-las. Vivemos o problema, queremos ser parte da solução.

Rede H e Rede de Cooperativas de Habitação de Lisboa

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