Inspecção-Geral investiga morte de bebé no Hospital das Caldas da Rainha

Situação que terá ocorrido alegadamente por falta de médicos nas urgências vai ser averiguada pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Representantes dos médicos dizem que esta falta de clínicos é comum a quase todos os hospitais.

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A grávida recorreu ao hospital sem chamar o INEM Nelson Garrido

O Centro Hospitalar do Oeste (CHO) abriu um inquérito e enviou uma participação à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), que vai investigar o facto de uma grávida que se dirigiu ao hospital das Caldas da Rainha ter perdido o bebé, na noite de quarta-feira. A urgência de Obstetrícia estava, na altura, encerrada, e o inquérito deverá averiguar se foi a falta de atendimento rápido e adequado que causou este desfecho. Os representantes dos médicos lamentam a tragédia mas dizem não ficar surpreendidos com um desfecho deste género, dada a falta de médicos no Serviço Nacional de Saúde. “É o corolário dos alertas que temos feito nos últimos meses”, lamenta Roque da Cunha, do Sindicato Independente dos Médicos (SIM).

Na quinta-feira, e quando ainda não era conhecido o caso das Caldas da Rainha, o SIM tinha colocado na sua página na Internet um alerta com o título “Vai ser complicado parir na Grande Lisboa”. Segundo a nota, o próximo fim-de-semana será de “catástrofe prevista nas maternidades da Grande Lisboa”, já que estão “diversas em contingência e algumas mesmo encerradas”. No sábado, diz o SIM, serão afectados os serviços de Setúbal, Barreiro e Almada. E na segunda-feira, feriado de Santo António em Lisboa, segundo o sindicato, juntam-se a estes três hospitais, o de S. Francisco Xavier e o Amadora-Sintra.

“As equipas de urgência de obstetrícia têm o mínimo de profissionais, na esmagadora maioria dos locais, e em alguns esse mínimo não é respeitado. O Ministério da Saúde tem mostrado uma insensibilidade atroz sobre isto”, diz Roque da Cunha ao PÚBLICO. O bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Miguel Guimarães, traça o mesmo cenário. “Não conheço nenhuma urgência do país que não esteja desfalcada. Quantas urgências é que cumprem o que são as equipas-tipo? Estamos numa situação de défice permanente, em que os médicos que apresentam escusa de responsabilidade dispararam. E depois acontecem coisas dramáticas como esta”, diz.

Bastonário propõe “auditoria clínica"

Miguel Guimarães diz que vai propor à OM que avance com “uma auditoria clínica” ao Hospital das Caldas da Rainha, para tentar perceber melhor o que ali se está a passar. “Temos de tentar ajudar. Temos várias situações explosivas, no sentido de não haver capacidade humana para garantir urgências em vários serviços do país”, diz.

A notícia da morte do bebé no Hospital das Caldas da Rainha foi avançada pela RTP. A televisão pública questionou o conselho de administração do Centro Hospitalar do Oeste que confirmou “que se verificou uma ocorrência grave com uma grávida, tendo sido determinada a abertura de processo de inquérito e participação à IGAS, no sentido de apurar o sucedido e eventuais responsabilidades”.

Nessa altura, refere ainda o comunicado, “a urgência obstétrica do Centro Hospitalar do Oeste teve constrangimentos no preenchimento da escala médica, o que determinou o encerramento da referida urgência ao CODU/INEM, após a definição de circuitos de referenciação de doentes com outros hospitais”.

Só que a grávida em questão não se deslocou ao hospital com o INEM, tendo chegado ao local pelos seus próprios meios, alegadamente, depois de sofrer uma hemorragia. A mulher terá sido acompanhada por dois médicos do hospital, incluindo uma obstetra que se encontrava ao serviço, mas a cesariana de emergência a que terá sido sujeita já não terá conseguido salvar o bebé. “O conselho de administração comunicou ao INEM que as urgências estavam fechadas, mas não avisou a população, e a senhora foi lá. E agora temos a lamentar a morte de um bebé, estamos solidários com os familiares e esperamos os resultados do inquérito, mas lamentamos que o Ministério da Saúde só vá agir depois da desgraça. Ou, pelo menos, imploramos que aja”, diz Roque da Cunha.

Já esta sexta-feira, o conselho de administração do CHO disse, em comunicado enviado ao PÚBLICO, “lamentar profundamente a morte registada”, mas recusa-se a prestar mais esclarecimentos sobre o caso, alertando que “foi aberto um processo de inquérito pela IGAS, sendo, por isso, prematuro estabelecer qualquer relação de causa-efeito entre o encerramento da urgência obstétrica e o referido episódio.​

Fonte do centro hospitalar confirma ainda que a urgência obstétrica está “a funcionar normalmente desde as 9h” de quinta-feira e que para que a mesma posso funcionar sem constrangimentos ao longo das 24 horas são necessários “três médicos por dia”. “O Conselho de Administração tem desenvolvido todos os esforços para contratar médicos necessários, em estreita articulação com as entidades competentes”, assegura ainda.​

Já uma fonte oficial do Ministério da Saúde (MS) diz que este está a acompanhar o caso ocorrido esta quarta-feira, “em especial a evolução da situação clínica da utente que está internada no hospital, que se encontra estável e a quem será prestado apoio psicológico”. Dizendo lamentar “profundamente a perda do bebé e o sofrimento da família”, o ministério de Marta Temido lembra que estando aberto um inquérito “não é possível estabelecer qualquer relação” entre a morte do bebé e os “constrangimentos na escala de Ginecologia-Obstetrícia, impossíveis de suprir”, que levaram a que a urgência do CHO estivesse, na altura, “desviada para outros pontos da rede do SNS”.

Tutela sem data para resolver problema

Sobre quando prevê ter o problema das urgências do CHO resolvido, o MS não dá uma data concreta, mas lembra que o despacho de Maio que define zonas geográficas carenciadas que deverão receber incentivos “aos procedimentos de mobilidade e de recrutamento de pessoal médico”, prevê “nove vagas” para esta unidade de saúde. Não precisa, contudo, que, segundo o despacho, este número inclui apenas um especialista em Ginecologia/Obstetrícia. Para todas as unidades de saúde do país identificadas no despacho está prevista “a contratação de mais 20 médicos na especialidade”, refere o MS, em resposta escrita.

Na mesma resposta, o MS salienta os esforços que têm sido feitos para aumentar o pessoal no SNS, lembrando que para esta especialidade em concreto foram contratados mais 103 médicos no SNS, entre Dezembro de 2015 e Abril de 2022. Pelo menos mais 26 poderão ser contratados nos próximos meses, já que, refere ainda: “[Está] a ultimar-se a abertura do procedimentos concursal para recrutamento dos recém-especialistas da 1.ª época de 2022, para as diversas áreas de exercício profissional e especialidades, incluindo portanto, a área de ginecologia/obstetrícia, no âmbito do qual e na época que acabámos de referir, adquiriram o correspondente grau de especialista, mais 26 médicos.”

Os problemas de falta de pessoal em vários serviços de urgência no país têm-se repetido. No hospital das Caldas da Rainha, em Abril, os chefes de equipa das urgências demitiram-se, por não terem o pessoal mínimo por equipa para funcionar. Na mesma altura, 23 médicos internistas do hospital assinaram um manifesto no qual denunciavam o que consideravam ser a “situação limite do ponto de vista de sobrecarga de trabalho e de qualidade assistencial” vivida no hospital que, diziam, é “absolutamente dramática, desesperante e totalmente inaceitável”.

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