Portugal e Brasil: raízes do estranhamento e da (in)comunicação

Depois de oito anos a trabalhar como adido de imprensa da embaixada de Portugal em Brasília, o jornalista Carlos Fino ficou com várias interrogações a bailar na cabeça: como é que nasceu e se consolidou o distanciamento entre Portugal e o Brasil? Porque é que se mantém? Porque falharam todas as tentativas de aproximação? A tese de doutoramento que defendeu há três anos sobre esta “parceria inconclusa” está agora em livro.

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Miguel Manso

“ouro preto. chego pela primeira vez aonde
sempre estive.”

José Luís Peixoto

Apesar da língua partilhada, dos laços de sangue e de um fundo histórico-cultural comum de mais de três séculos, as relações entre Portugal e o Brasil têm sido reconhecidamente permeadas por um sentimento de estranheza ou desconforto mútuo, mesmo quando no plano estatal — sobretudo em períodos de coincidência ideológica e política dos regimes que os governam — se registam avanços em termos de acordos e tratados celebrados em diversas áreas.

Esse estranho estranhamento opera como fator inibitório do aprofundamento das relações, que estão aquém da intensidade registada noutros casos de relacionamento entre a ex-potência colonial e as ex-colónias, designadamente a Inglaterra com os Estados Unidos e a Espanha com os países latino-americanos. A latência de uma aproximação não inteiramente realizada entre Portugal e o Brasil já foi até caracterizada como “parceria inconclusa”. Paralelamente, regista-se entre os dois países um défice de comunicação, que tanto pode derivar desse desajustamento mútuo como estar na sua origem. Em qualquer caso, essa (in)comunicação tende a reforçar o estranhamento e vice-versa, num perpetuum mobile de que ambos mutuamente se alimentam.

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Pormenor da rosa-dos-ventos no pavimento junto ao Padrão dos Descobrimentos, em Belém, Lisboa Tânia Azevedo

Investigar as origens dessa realidade, sondar na história do passado comum as razões desse estranhamento e dessa (in)comunicação, este o objetivo da tese que — sob tutela conjunta da Universidade do Minho e da Universidade de Brasília — defendemos, em abril de 2019, no Instituto de Ciências Sociais, em Braga, e serve agora de base a este livro. Uma tese a que metemos ombros movidos pelo sincero desejo de aprofundar o conhecimento dessa situação e encontrar respostas para uma série de questões que se nos foram colocando à medida que avançava o nosso relacionamento pessoal e profissional com o Brasil e com os brasileiros.

Para tal, procedemos a um extenso levantamento historiográfico, acompanhando os juízos e interpretações de caráter político e sociológico que os acontecimentos foram suscitando ao longo do processo altamente complexo e contraditório de construção e consolidação da identidade nacional brasileira na sua interação com a identidade portuguesa.

Um estranhamento com raízes profundas

A investigação mostrou que não estamos perante fenómeno transitório de fácil superação. O estranhamento entre Portugal e o Brasil tem raízes profundas: surgiu em situações de múltiplos choques de interesses e confrontos, está na génese da própria nacionalidade brasileira e consolidou-se nos últimos dois séculos nas narrativas históricas e sociológicas, tendo depois os seus termos sido absorvidos — consubstanciados numa ideologia de cariz antilusitano aberta ou difusa — pelos sistemas escolar e mediático brasileiros, que os implantaram e fortaleceram no próprio senso comum através de uma reiterada, maciça e sempre repetida popularização.

Note-se, entretanto, que esse antilusitanismo histórico não foi unilateral — resultou, como veremos, de um processo complexo em que há responsabilidades mútuas — e não se traduz em hostilidade para com o Portugal contemporâneo. Não impede, por exemplo, milhares de brasileiros de viverem e se sentirem bem em Portugal e de muitos milhares de outros o visitarem com gosto, apreciando a tranquilidade e a segurança, descobrindo a paisagem, os monumentos, a gastronomia, e — pesem embora os problemas ainda existentes — os bons índices de desenvolvimento económico-social das últimas décadas; descortinando até — quase sempre com boa dose de surpresa e por entre eventual desconforto com o sotaque e uma ou outra reação mais ríspida ou menos cordial — os insuspeitados ecos de um remoto passado comum.

O mesmo acontece, aliás, com os portugueses que visitam o Brasil, em geral bem recebidos e acolhidos, numa envolvência de grande cordialidade e sem problemas, se forem estóicos o bastante para encaixar as piadas que ainda hoje circulam... Desta forma, não se reportando ao Portugal contemporâneo e não sendo inteiramente consciente, o antilusitanismo histórico brasileiro pode perfeitamente viajar incógnito a bordo dos aviões da TAP...

Parafraseando Alexandre O’Neill, e por insólito que pareça, esse antilusitanismo é, antes de mais, um problema que o Brasil tem consigo próprio. A inversão de sentido operada no momento da independência para formar — por contraste com a lusitana — a sua própria nacionalidade foi tão intensa e prolongada que o Brasil parece ter esquecido a sua origem. A ponto, por exemplo, de não só não comemorar oficialmente a Descoberta, em 1500, mas inclusive de a questionar ou mesmo negar; e agora, também, se limitar a mal assinalar, sem verdadeiramente celebrar, o Dia Mundial da Língua Portuguesa, como se ela não lhe pertencesse.

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Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500, pintura de Oscar Pereira da Silva, datada de 1900 Museu do Ipiranga/Wikimedia Commons

Por injustificado complexo, na ânsia de rejeitar o seu passado colonial — imagem que não se ajusta ao sonho de grandeza no qual sempre se revê e projeta — pode dizer-se, na fórmula de Pessoa, que o Brasil fingiu esquecer Portugal; e fingiu tão completamente que às vezes chega a fingir que se esqueceu, quando se esqueceu realmente. Como refere Lourenço, enquanto “todo o português é por dentro um gesto a dizer ao brasileiro que o descobriu”, em contrapartida todo o brasileiro é um gesto, “perfeito e negligente a dizer que não se lembra”... Para adensar a complexidade da questão, basta recordar que todo o processo de independência — num primeiro momento mais desejada pelos portugueses que na época se consideravam “colónia de uma colónia” — se fez com base no Estado herdado de Portugal e que toda a ideologia antilusitana do Brasil vai beber a rodos ao pessimismo lusitano de final do século XIX. Mesmo quando mais quer frisar a diferença e a separação, o Brasil parece assim não conseguir escapar a uma indelével marca lusitana, como se esta fosse um fado de que não se consegue libertar. E tanto menos o consegue quanto mais se recusa a reconhecê-la. Em suma, o emaranhado das raízes não podia ser mais perfeito.

Um substrato unificador poderoso

Entretanto, apesar desse contínuo e estranho estranhamento e da (in)comunicação que dele se alimenta e o alimenta; apesar do rápido avanço nos últimos anos das igrejas evangélicas, que podem superar a curto prazo a tradicional influência católica, de raiz portuguesa; apesar das fortes tradições de origem africana e do culto das suas religiões trazidas com a escravatura, designadamente o candomblé e a umbanda; apesar das diferentes identidades indígenas e da influência própria dos diversos grupos étnicos da imigração — dos italianos, espanhóis e alemães aos japoneses, passando pelos sírio-libaneses e eslavos de distintas procedências — que militam, todos eles, no sentido de edificar um perfil nacional distinto e muitas vezes oposto ao português; apesar de tudo isso, que é imenso, o elemento de origem lusa continua hoje, de uma ou outra forma, a desfrutar de uma hegemonia difusa, mesmo quando a ascendência lusitana, entretanto miscigenada, já se esbateu ou até se perdeu nas consciências.

A sua influência prolonga-se, antes de mais, através do sangue e da língua, mas também de um fundo comum de múltiplos hábitos e tradições, da gastronomia à religião e ao imaginário. A própria padroeira católica do país — Nossa Senhora Aparecida — embora de aparência negra, é, afinal, a imagem (encontrada no fundo de um rio por pescadores, no começo do século XVIII e por isso enegrecida) da bem portuguesa Nossa Senhora da Conceição — padroeira de Portugal (Alvarez, 2014).

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O Beijo Atravez do Oceano, de Mora, que fez capa da Ilustração Portugueza e da Revista da Semana, Rio de Janeiro, aquando da chegada de Gago Coutinho e Sacadura Cabral ao Brasil na primeira travessia aérea do Atlântico Sul, em 1922, nas comemorações do primeiro centenário da independência do Brasil

Por outro lado, toda uma miríade de festas católicas celebradas anualmente de norte a sul do país — Círio da Nazaré, em Belém do Pará; Bonfim, em Salvador; Bom Jesus dos Navegantes, em Sergipe; São Sebastião, no Espírito Santo... há muito que vem carreando e mantendo vivas uma série de práticas de raiz lusitana. Daí que o próprio Sérgio Buarque de Holanda — que queria cortar essas raízes por considerá-las obstáculo ao desenvolvimento — tenha acabado por reconhecer que subsiste entre os dois países uma “alma comum”. “Um substrato unificador poderoso” — confirmaria, mais tarde, Antônio Cândido — “formado pela língua e por influências originárias de todo o tipo (literárias, folclóricas, arquitetônicas, urbanísticas, familiares) geradoras de uma fôrma na qual se acomodam os neobrasileiros de vária origem”.

Seja como for, ainda que correndo paralelo e em confronto com essa influência difusa, mas real, de origem portuguesa e tendo também que se defrontar com uma corrente lusófila sempre mais ou menos presente, o antilusitanismo não é algo de efémero: está na génese da própria nacionalidade brasileira e vem sendo desde a origem reiterado pela escola e pelos media, o que obviamente dificulta qualquer ação que tenha por objetivo ultrapassá-lo. Sobretudo se não houver — como não tem havido até agora — um trabalho persistente em termos de comunicação por parte de Portugal.

Por outro lado, da independência do Brasil para cá, tudo parece ter sido já tentado para minorar a estranheza que assim se instalou entre os dois países. E tudo também parece ter mais ou menos claudicado, esgotadas que foram múltiplas e diversas iniciativas de (re)aproximação — do lançamento de revistas literárias conjuntas a utópicos planos de confederação — acabando por se instalar de parte a parte um clima de lassidão, cansaço e descrença, pouco propício ao surgimento de novas ideias nessa matéria.

Embora tendo disso plena consciência, identificadas que foram as raízes do estranhamento e da (in)comunicação, arriscamos, no final da investigação e à luz das teorias e práticas já existentes, sugerir o que — em traços gerais — poderia ser feito para ao menos mitigar o desconforto/(des)sintonia que em permanência atravessa o relacionamento entre Portugal e o Brasil. Mais importante do que isso, no entanto, o maior contributo que este livro poderá eventualmente dar para o aprofundamento da relação Portugal-Brasil é tornar essa questão de fundo cada vez mais consciente, conhecendo-se a sua origem e os seus porquês.


Lisboa-Brasília, 2019/2020

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