Douro: “Há lições de sustentabilidade únicas inscritas nesta paisagem”

Para além de novos contributos da ciência, os investigadores não têm dúvidas de que o Douro guarda, nas suas encostas, outras ferramentas óptimas para os desafios que aí vêm, e que estão a ser estudadas.

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Nelson Garrido

O stress na vinha tem várias adjectivações. Pode ser hídrico, térmico, radiativo, entre outros. De há uns anos para cá, na cabeça de muitos agricultores passou também a ser climático, chapéu indesejado no qual cabem todos os receios sobre o futuro da vinha e, principalmente, do vinho. Se a sobrevivência de uma planta adaptada às mais difíceis condições não suscita grande dúvida, a qualidade do que dela se produz já levanta muitas interrogações. Mas, mesmo antevendo-se mais quente e mais seco, o Douro, que no século XIX sobreviveu ao cataclismo da filoxera, não vai desarmado para o combate a um problema que, mais uma vez, apela à inovação, mas também, e de novo, à resiliência de quem ali vive e trabalha.

Glosando, no conhecimento, a abertura ao mundo que a tornou famosa, a região não navega sozinha nestas águas tumultuosas, a fazer lembrar os rápidos do Douro, que, mesmo depois da destruição do cachão da Valeira, ainda fizeram as suas vítimas. Remando contra uma corrente que parece imparável, e tacteando o fundo como pode, o mundo do vinho está todo atrás de respostas, e ainda no final de Novembro o climatólogo e investigador da Universidade de Trás-os-Montes o Alto Douro, UTAD, João Santos andou em reuniões a concluir o projecto Clima4vitis, recebendo, em Portugal, os parceiros internacionais desta iniciativa. Financiada pelo programa Europeu Horizonte 2020, procura ampliar e divulgar a informação sobre os impactos das alterações do clima nesta cultura e as formas de mitigação possíveis.

A busca de conhecimento reúne académicos mas mobiliza também empresas. A Taylors, por exemplo, tem organizado as Climate Talks, à volta das mesmas preocupações, e dos vários projectos neste vaivém entre a academia, o terreno, e associações como a Advid, que tem a sua acção centrada na viticultura duriense, ou a Porvid, com acção de âmbito nacional, resultam ferramentas muito úteis. A Advid, a UTAD, o INESC TEC e a GeoDouro desenvolveram a InfraVini, uma base de dados espaciais de apoio à decisão que inclui indicadores climáticos e agronómicos, permitindo aos viticultores localizados em qualquer área de uma região vitivinícola usufruir, no futuro, de modelação sobre necessidades várias (hídricas, por exemplo), à luz dos vários cenários climáticos previstos. É o Douro a trabalhar, no limite, para o mundo. Para além de novos contributos da ciência, João Santos e outras figuras da academia atentas a esta região não têm dúvidas de que o Douro guarda, nas suas encostas, outras ferramentas óptimas para os desafios que aí vêm, e que estão a ser estudadas. Afinal, o que se poderia esperar de uma região que criou terra onde ela não existia, socalco a socalco, e que geriu, com sabedoria, a água pouca que o clima lhe dá, fora do Inverno? “Há lições de sustentabilidade únicas inscritas nesta paisagem”, assinala Teresa Andresen, arquitecta paisagista, acrescentando ao canivete suíço da região a importância da biodiversidade que nela se preserva e que, em muitas propriedades, tem vindo, de novo, a ser estimulada.

A agricultura foi sempre muito mais do que o seu produto final, seja qual for a fileira em que estivermos a pensar, e, como se vê por este fenómeno global, com diferentes impactos locais, a sua evolução também se faz por factores alheios a quem vive da terra.

Quando em 2013 o PÚBLICO visitou o campo de ensaios da Associação Portuguesa para a Diversidade da Vinha (Porvid), bem mais a sul dali, em Pegões, contámos a história de um país atrasado para o padrão da economia dos vinhos que mais sucesso tinha tido no mundo, ao longo do século XX e daqueles primeiros anos do XXI. Um país em que, graças a três investigadores perseverantes, Antero Martins, do Instituto Superior de Agronomia, da Universidade de Lisboa, Nuno Magalhães, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e Luís Carneiro, da Estação Agronómica Nacional, se descobriu, nessa pobreza atávica, um tesouro. Aparentemente subdesenvolvida, a viticultura tradicional preservou uma diversidade genética incrível nas vinhas que escaparam ao arranque, ao investimento nas castas da moda, produtivas, apelativas, num mundo globalizado e a estreitar o gosto. A revista World of Fine Wines chamou-nos, já nesse início da década passada, “Arca de Noé da biodiversidade da vinha”, boa metáfora para um tempo de extremos que ameaçam os equilíbrios a que estávamos habituados.

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O futuro do Douro estava também, e está ainda, naquele campo de ensaios, onde se guardavam mais de 250 castas autóctones de todo o país, e onde o estudo da sua variabilidade intracasta vem permitindo descobrir as características que tornam cada clone mais apto para diferentes condições. Um Riesling fazia-se então com meia dúzia de clones, desperdiçando-se essa variabilidade para chegar à planta “óptima”. Só no Alvarinho, contava-nos Antero Martins, descobriram-se 530 variantes internas, com um potencial que era preciso investigar.

Que variante é mais produtiva? Como se comportam em termos de produção de açúcar, da acidez ou das antocianinas, responsáveis pela coloração das uvas? Quais se dão melhor com o calor, ou com o aumento da radiação solar? E qual delas vive bem com menos água? São perguntas, algumas urgentes, que os produtores do Douro vão fazendo cada vez mais, à medida que, no terreno, no ciclo vegetativo das plantas, e nas previsões, o clima já em mudança antecipa colheitas e aumenta o desafio numa região que foi sempre, ela própria, exemplo de superação.

Para várias das principais castas, é muito já o conhecimento produzido. Para outras, há um caminho imenso a fazer, demorado, como demorada foi a construção daquela paisagem pelo homem. A vantagem: há muito que aquele deixou de ser um projecto de carolas percorrendo o país ao fim-de-semana, para juntar o melhor da academia com um mundo empresarial exigente como poucos, como já se explicou.

Um trabalho de equipa, entre humanos, descobriu que trabalhando também em equipa diferentes clones, com características específicas, se pode, no conjunto, garantir resultados que vão para lá da soma das partes. É como no futebol, mas neste caso cada equipa leva sete a 20 clones a jogo, explica a Porvid. Numa táctica de tudo ao molhe e fé na ciência, ao serem plantados misturados, estes “oferecem maior estabilidade nos ganhos de selecção genética e menor susceptibilidade aos efeitos ambientais (clima, solos, doenças, etc.) sobre esses ganhos. Esta estabilidade é decisiva, por exemplo, para uma melhor resiliência às alterações climáticas, sem necessidade de mudar as castas tradicionais das diferentes regiões vitivinícolas”, assinala a associação criada em 2009.

Dez anos depois do nascimento da Porvid, em 2019, os 48 Estados-membros da OIV, a Organização Internacional da Vinha e do Vinho, votaram unanimemente a favor do reconhecimento da validade desta metodologia da selecção policlonal criada entre nós. E, já este ano, em Setembro passado, Portugal tornou-se o primeiro país do mundo a criar um programa de certificação que põe um travão na erosão genética das castas e dá aos viticultores a oportunidade, voluntária, de procurarem materiais de propagação gerados por este método que promete futuro. Misturar várias castas, como se vê nas autênticas vinhas velhas, era já uma antiga estratégia empírica dos agricultores durienses, para manter a qualidade do vinho, lembra João Santos. A ciência dá, agora, um novo refinamento — e uma nota de esperança — a esta forma de trabalhar.

Há séculos que o Douro se transformou, no imaginário português, numa espécie de linha de produção de vinho, inscrita em linhas sinuosas numa paisagem difícil. Mas há mais do que vinha na sua paisagem, e a diversidade parece ser, na verdade, a palavra-chave das múltiplas estratégias de adaptação possível. Não é por acaso que, como se lia na última revista de vinhos do PÚBLICO, a família Nicolau de Almeida comprou uma quinta junto ao seu Monte de Xisto, para manter lá os matos. Improdutivos? Não. Tal como as leguminosas que já se vêem entre bardos de videiras, ou como as oliveiras que salvam as suas companheiras de folha larga do escaldão, descreve João Santos, no mosaico biodiverso destas encostas há seres trabalhando para que o solo se mantenha equilibrado, fértil, produtivo, com recurso a menos fertilizantes de síntese, por exemplo.

A água é um bem escasso, e a rega, a que alguns já recorrem, não será uma solução disseminável, nem sequer sustentável, faz notar o climatologista que coordenou o Climavitis. Como outros investigadores, João Santos considera que esta deverá ser a última opção, até pelo seu efeito no comportamento da própria vinha. No Douro, ela foi domesticada não apenas para dar boa uva, mas para o conseguir em condições difíceis, e facilitar-lhe a vida seria enfraquecer-lhe a capacidade de resistir.

Cabe ao seu companheiro de sempre, o homem, dosear-lhe o esforço, e acima de tudo manter toda a atenção aos stresses vários a que será submetida. Estes, descreve João Santos, podem, a cada ano, durar apenas dias, mas os seus efeitos debilitantes prolongam-se no tempo e as plantas começam a ter problemas de saúde gerais, com efeitos na sua longevidade e na qualidade do seu produto, a uva, de que depende toda a região. E gerados por fenómenos à escala global, os extremos que os provocam, insiste, vão estar aqui presentes, sem que a comunidade possa fazer algo para os impedir. Já a adaptação, essa pode dar bons frutos — que é como quem diz bom vinho.

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