Vítima mortal de atropelamento considerada culpada pela Relação. Silêncio de carro eléctrico avaliado como um risco

O facto de não ter cumprido o Código da Estrada fez com que o Tribunal da Relação do Porto atribuísse a culpa da morte à vítima, que atravessou sem precaução.

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Os reguladores europeus, que determinaram a inclusão do ruído artificial nos carros eléctricos, consideram existir um perigo acrescido no silêncio PAULO PIMENTA

A ausência de ruído, típica dos carros eléctricos homologados antes de Julho de 2019, foi determinada como uma das variáveis que poderá ter contribuído para um atropelamento, em Setembro de 2017, que resultou na morte de uma jovem de 26 anos. Ou seja, quem seguia aos comandos do veículo foi ilibado e a culpa do acidente foi atribuída à vítima, que “iniciou a travessia da faixa de rodagem distraída”, mas a companhia de seguros foi condenada a pagar uma indemnização à família, no valor de 27.400€.

O acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), citado pelo Jornal de Notícias, contraria, em parte, o tribunal de primeira instância que não só tinha deliberado a absolvição da condutora como da seguradora. Já o valor da indemnização, muito inferior aos 150 mil euros exigidos pela família, corresponde, explica o TRP, “à medida do risco causal do acidente imputável à circulação do automóvel”.

É que, sobre o facto de os automóveis eléctricos primarem pelo silêncio — pelo menos, os homologados antes de Julho de 2019, data a partir da qual os fabricantes deste tipo de propulsão passaram a ser obrigados a incluir um som artificial —, o acórdão sublinha que o risco da circulação de carros eléctricos, que produzem menos ruído, é ainda desconhecido da maioria das pessoas: “Os peões valorizam ainda, de modo muito significativo, o ruído dos motores dos automóveis como forma de pressentirem o perigo da sua aproximação, confiando automaticamente na audição, desvalorizando algumas vezes o sentido da visão”, o que o tribunal considera ser “uma conduta errada”.

Para o presidente da UVE - associação de Utilizadores de Veículos Eléctricos, Henrique Sanchez, “compete ao condutor ter especial atenção” quando se trata de um carro em que o ruído se limita ao do rolamento, sendo praticamente inexistente a baixas velocidades. No entanto, nota, “em ambiente urbano, o ruído normal da cidade não permite saber se um carro se aproxima ou não, seja este eléctrico ou a gasolina”, competindo ao peão ter atenção antes da travessia de uma via.

E foi precisamente essa a conclusão dos juízes da Relação, que avaliaram que a jovem “foi imprudente ao dar início à travessia da estrada sem ter observado previamente se o podia fazer em segurança (…)”, não respeitando, dessa forma, o Artigo 101 do Código da Estrada que diz que “os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”.

Os reguladores europeus, que determinaram a inclusão do ruído artificial nos carros eléctricos, parecem, no entanto, considerar existir um perigo acrescido no silêncio, sobretudo para deficientes visuais. Em 2014, o Parlamento Europeu considerou ser “importante proporcionar protecção aos cegos e outras pessoas vulneráveis através da instalação de sistemas adequados de alerta em veículos eléctricos”, tendo informado que “o Parlamento e o Conselho acordaram que tais sistemas devem ser obrigatórios”, com um período de transição fixado em cinco anos.

O mesmo foi aplicado nos EUA, onde se considera ainda “que os condutores são culpados pelas suas acções ao volante” e que “os condutores de eléctricos e híbridos têm o dever de ser supervigilantes ao cruzar áreas metropolitanas com movimento pedestre intenso”.

“Hoje em dia, a legislação já obriga os carros [eléctricos e híbridos] a sair de fábrica com sinal sonoro”, lembra Henrique Sanchez, ainda que faça a ressalva que a maioria dos que se encontram em circulação é anterior a 2019, ou seja, ainda sem o som artificial incluído. A solução para o presidente da UVE poderia estar na inclusão daquela tecnologia nos carros com mais idade, considerando que, se se desse o caso de as marcas proporem isso aos seus clientes, os utilizadores iriam muito provavelmente acolher bem a ideia.

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