Porque não temos filhos?

Sem estabilidade financeira, como podemos pensar em estabilidade emocional? É possível, mas é difícil.

Sabes porque é que não temos filhos? Essa é uma característica praticamente enraizada nesta nossa geração, a geração que navega agora pelos trintas com uma velocidade tal que daqui a nada serão quarentas. Mas a ausência de filhos não está numa teima ou numa mania. Não. Há razões concretas, e parece-nos que, por mais que tas expliquemos, nunca as entenderás verdadeiramente. O fuso geracional é real, e provavelmente falamos línguas diferentes – tu não nos percebes, nós não te percebemos. Mas tentemos, mais uma vez.

Começa logo pelo estado das nossas finanças. Somos aquela geração à rasca, lembras-te? A geração que esteve em empregos precários ao longo da década passada, e que se resignou aos salários miseráveis (quando existiam) e aos recibos verdes. Fomos vistos como recém-licenciados até aos trinta anos. Em paralelo, estamos num momento peculiar: talvez fruto da maravilhosa evolução da esperança média de vida, os cinquenta são os novos quarenta, e os nossos chefes recém-cinquentões continuam a olhar para nós como garotos-afilhados-estagiários, e com esse título vem o ordenado que fica sempre igual, raramente a ultrapassar os mil euros. Não que antigamente se ganhasse mais, mas o dinheiro valia mais, os gastos eram menores e o poder de compra era outro, e por isso a discrepância entre o que ganha a nossa geração e a que nos antecedeu chega a ser risível. Porque há contas para pagar – e que contas.

A especulação não está para aventuras, e conseguir pagar casa já é uma vitória que merece presença no CV. E depois há os descontos, e mais a comida, e mais a água e a luz e o telemóvel e a internet e aquela extra que fez falta este mês para pagar o copo que partiu ou a lâmpada da sala. Já para não falar do carro, que é como ter uma outra boca à mesa, para quem consegue dar-se a esse luxo-que-já-não-é-um-luxo, mas uma necessidade mascarada de liberdade. A socialização também custa dinheiro, e ao contrário do que julgas, também é uma necessidade, e não um devaneio do espírito. Uma cerveja aqui, um espectáculo acolá, e um livro para disfarçar a lenta passagem do mês, talvez um jantar se a sorte correr de feição, e chegamos ao dia onze já a pensar em ratar o pote das parcas poupanças. Heróis são os que, mesmo assim, decidiram ter filhos – ainda que contem com a valiosíssima ajuda dos avós da sortuda criatura.

Sem estabilidade financeira, como podemos pensar em estabilidade emocional? É possível, mas é difícil. Está cada um a lutar pelo seu quinhão, e o tempo de sobra não é muito. Podemos investir em encontrar um parceiro para a vida, mas o crescimento deu-nos circuitos fechados – os mesmos amigos ao longo dos últimos anos impedem-nos de encontrar gente nova com quem possamos imaginar uma vida em comum. Já não há faculdade que nos valha essa função. Temos os Tinders e os Bumbles e outros que tais, mas às vezes mais valeria prostrarmo-nos às portas do inferno e o efeito seria mais ou menos semelhante.

Investimos em dates aqui e ali, cada um mais rocambolesco do que o outro, e também nós cometemos os nossos próprios pecados do quais podemos ser acusados, e ganhamos a consciência de que a nossa vida podia muito bem ser equiparada à do Jerry Seinfeld nos anos noventa. Em paralelo, a idade também já nos trouxe agruras a mais, e estamos descrentes. Trazemos muito lixo na mochila e a sintonia é uma língua estrangeira. Sedimentam-se os hábitos e enferrujam-se as fechaduras, e fica cada vez mais difícil abrir uma porta. Isto para não dizer que somos a primeira geração que sabe que o o divórcio é praticamente certo daqui por dez ou quinze anos, e se calhar não estamos para isso.

Sabes, o nosso entendimento de nós mesmos também se transformou. Começamos a perceber os nossos demónios, já temos um nome para lhes dar. Compreendemos que a saúde mental – ou a falta dela – pode determinar o equilíbrio de um ser que dependa de nós. Graças à terapia e ao que vamos ouvindo dos nossos amigos, temos uma noção mais aprofundada dessa potencial herança. Não queremos ter de lidar com uma outra mente se ainda não podemos cuidar decentemente da nossa. E esse cuidado leva tempo e atenção. Aprendemos a ser pacientes connosco próprios, e provavelmente nem tens dado conta – é bom sinal.

Acredita: se queremos ter filhos, queremo-lo mais do que tu. E a vida pode estar a pôr-nos travões involuntários à vontade. Umas coisas podem ser resolvidas com o tempo e com algum esforço, mas outras não. Sabes lá se nos perguntas quando temos filhos enquanto nos debatemos com um sarilho de infertilidade. Talvez não o imagines, mas muitos de nós travam essa batalha no momento em que lês estas letras.

Mas também há outra possibilidade, sabes: nós podemos não querer ter filhos. Provavelmente, é resultado da internet e de todas as histórias que ouvimos vindas de pontos do globo que nem sabíamos existir: pode viver-se de muitas maneiras. Quando cresceste, tinhas apenas à tua disposição a única saída viável, a dos teus pais e dos teus pares: arranjar emprego, casar e ter filhos. Quem não o fizesse, era extraterrestre. Era a maluquinha do bairro, a futura velha dos gatos, ou o homem estranho a quem faltava um dente e com quem ninguém queria sequer partilhar a calçada. Hoje, podemos ser outras coisas para lá da paternidade: podemos apreciar a solteirice, o poliamor, uma vida a dois sem mais seres para além de um gato, uma vida num mosteiro budista. Entendemos que não entendas, e não tens de entender.

Agradeceremos sempre a tua preocupação, mas as tuas perguntas têm um certo potencial para ferir, mesmo que tragam preocupação e amor. Mas, por mais que te interesses, o facto de não termos filhos carrega motivos que são só nossos. Uma coisa é certa: quando vierem filhos, serás dos primeiros a saber. Até lá, pára de perguntar.

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