Poliamor: o amor não se divide, multiplica-se

Não é poligamia, não é traição, não é promíscuo. Gostar muito de várias pessoas é possível e faz “as pessoas felizes”

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Sofia C., Daniel Cardoso e Inês Rôlo (da esquerda para a direita) Enric Vives-Rubio

Saída de um namoro de seis anos, Marta queria estar sozinha. Concentrar-se nos estudos, ter tempo para ela. Não esperava conhecê-lo e beijá-lo naquela noite. Começaram a estar juntos. Não estava preparada para uma relação e ele sabia-o. “Tudo às claras”, sublinha, ao telefone com o P3. Em tudo. Disse-lhe, por isso, quando começou a interessar-se por ela. Disse-lhe que quando ela a tentou beijar, só conseguia pensar: “Como é que ele reagiria a isto?” “Vamos tentar”, respondeu mais tarde.

Meses depois, Marta (nome fictício) vive em permanente tumulto. Não consegue escolher, não vai escolher. Agora que ele até aceita, ela, o outro vértice, não. “No ponto de vista dela, a exclusividade é o que define uma relação”, conta Marta. Entende-a — há alguns anos também pensava assim. Noutro dia conseguiu uma pequena vitória. Estiveram os três numa festa e não houve problemas. É certo que passou a noite a saltar de um lado para o outro e não pôde mostrar afecto a nenhum dos dois, mas foi, ainda assim, um grande passo.

Não se considera poliamorosa. Acredita que numa relação uma pessoa não se deve “limitar” e, por isso, não se vê a voltar ao tradicional modelo monógamo. Também não é que “tenha de estar com outras pessoas”. Neste caso, simplesmente “aconteceu” apaixonar-se por duas pessoas. “Se me encostarem à parede, eu não vou conseguir decidir. Se uma das relações acabar, vai ser muito difícil para a pessoa que ficar porque estarei de coração partido.” É “difícil” explicar, por isso agarra-se a uma frase que se lembra de ter lido em “Memória das Minhas Putas Tristes” de Gabriel García Márquez: “O que [ela] já viveu não te tira nada”. Ou seja: “Aquilo que eu sinto por um, não tira nada ao outro.”

Não é poligamia

Existem mais formas de relações, para além do ideal do príncipe encantado e da princesa” da Disney, critica Inês

A história de Marta mostra que a vertigem pode estar logo ali ao lado. Amar várias pessoas é possível, o que não quer dizer que seja fácil. Não é uma palavra nova, esta, poliamor. Primeiro, alguns pontos de honra: poliamor não é poligamia; não é traição; não é sinónimo de promiscuidade. “Passava por ser um tabu sexual”, começa Sílvia Ribeiro, terapeuta sexual e professora universitária. Nesta vivência, qualquer pessoa tem a liberdade para manter mais do que uma relação em simultâneo. “Aparece associado muitas vezes à poligamia, mas não tem nada a ver. No poliamor, a base é a ligação afectiva e a honestidade, não é o sexo”, sublinha a sexóloga.

É extremamente condescendente dizer que o poliamor é uma moda, considera Daniel Cardoso

O poliamor “transforma a noção de traição porque transforma a noção de fidelidade”. Daniel Cardoso, 25 anos, professor universitário, actualmente a fazer o doutoramento em Ciências da Comunicação, é poliamoroso. A sua tese de mestrado debruçou-se, aliás, sobre o tema (é a única em Portugal sobre poliamor). Tem, neste momento, duas relações em simultâneo — com Sofia C., há oito anos, e Inês Rôlo, há dois anos e meio. Elas, punaluas (termo que significa o “amor do meu amor”, o “amante do meu amante"), são grandes amigas. Pertencem “à mesma família”, referem-no, um sem número de vezes.

Nem sempre as associações LGBT vêem o poliamor com bons olhos, comenta Sofia C.

“A palavra fidelidade vem do latim ‘fides’ que significa dizer a verdade. Se eu disser a alguém com quem tenho uma relação que me poderei vir a interessar por outras pessoas, estou a dizer a verdade, estou a ser fiel”, remata Daniel. Ou seja, no poliamor há uma base de honestidade que é essencial. “Os comportamentos de não-monogamia [na sociedade] são frequentes, só que são feitos de forma não ética”, refere Daniel, em alusão às traições nos casais.

Pode não ser para toda a vida

Tal como em todas as relações, também há problemas. Inseguranças, tensões, conflitos. Pode ser mais difícil: somam-se mais pessoas à equação amorosa e há o peso de uma sociedade tipicamente “hetero-mono-normativa - e patriarcal, já agora”, refere Daniel. “Não estão enquadrados no puzzle que foi definido”, diz Sílvia. É, desde logo, uma recusa ao “curso intensivo” perpetuado pela Disney que Inês Rôlo tanto critica — “o ideal do príncipe encantado e da princesa” que leva “as pessoas a pensarem que não há outra maneira de fazerem as coisas”.

E há vantagens. “A possibilidade de explorar uma série de vivências emocionais, sexuais, íntimas que de outro modo não teria acesso”, destaca Daniel. “Mostrou-me que eu não tenho de ter um rótulo a definir-me para a vida toda, que não tenho de estar amarrada ou presa”, diz Inês. Sofia C. acrescenta: “A liberdade, a confiança. Não é que não possa haver mentiras, mas os motivos para a mentira diminuem.”

É o que faz sentido para eles, o que não quer dizer que o poliamor seja superior ou inferior a outros modos de relacionamento. “O que me importa é que as pessoas sejam criativas e inovem na maneira de responder aos problemas, que não presumam que sabem à partida qual é a melhor resposta, seja ela monogamia ou outra qualquer”, afirma, peremptório Daniel. “É uma vivência que pode não ser definitiva”, sublinha Sílvia, que, enquanto terapeuta, já escutou muita gente confidenciar a angústia de gostar muito de várias pessoas. “Pode estar ligado a diferentes momentos da vida. São equilíbrios e fazem as pessoas felizes.”

Aqui, “o amor não se divide, multiplica-se”, conclui Daniel. “Amamos esta pessoa e outra pessoa e há um efeito de ‘loop’, de ‘feedback’, em que o amor também nos é devolvido e temos aquela sensação de muito.” 

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