Uma Enfermagem com futuro ao serviço das pessoas

Propomos um novo pacto à sociedade portuguesa e estamos disponíveis para o discutir com todas as forças vivas e organizações sociais, nomeadamente com todas as forças políticas democráticas.

A Enfermagem é uma profissão com história, mas desta realçamos a que se escreveu nos últimos 30 anos: integrámos o ensino superior, desenvolvemos novas competências concetuais, cognitivas e clínicas, almejámos graus académicos avançados, desenvolvemos investigação reconhecida, nacional e internacionalmente, como excelente, intervimos clinicamente em todos os contextos, estando empiricamente demonstrado o contributo dessa intervenção para os resultados em saúde, participamos na vida social e comunitária e, em tempo de crise, emigramos e ombreamos com os melhores nas mais diferentes latitudes. Apesar disso, sentimos que a população portuguesa, aquela que nos proporcionou este desenvolvimento, é a que menos usufrui do nosso atual potencial, da nossa capacidade de contribuir para a sua saúde e bem-estar.

Dito por outras palavras, num exercício de maximização do contributo da Enfermagem para o bem comum e como resposta ao seu principal desiderato, é nosso entendimento que aquela deve propor uma renovação do seu contrato social, porque tem condições para ser muito mais útil e dar muito mais à sociedade do que aquilo que lhe é permitido neste momento.

Tal é particularmente pertinente num momento em que, fruto de um conjunto diversificado de variáveis, o perfil epidemiológico da população modificou-se profundamente. Estamos agora perante uma sociedade envelhecida, onde predomina a multimorbilidade crónica e dependência (9 das 10 principais causas de morte são doenças crónicas). Para, nesta circunstância, se viver com bem-estar, é necessário desenvolver uma abordagem centrada no autocuidado e sustentada na literacia, assumindo como foco e simultaneamente como co-produtores de cuidados, a pessoa e o seu contexto sociofamiliar e como local privilegiado de prestação de cuidados a casa das pessoas. É necessário desenvolver modelos de cuidados congruentes com isso e que garantam a integração e a continuidade de cuidados, e dentro desta, a continuidade relacional.

Curiosamente, mesmo na situação extraordinária que temos vivido – a pandemia – esta perspetiva faz todo o sentido. Para lá da enorme pressão sobre os hospitais e dentro destes, sobre as UCI, temos, a montante, uma clamorosa carência de resposta da saúde pública e a jusante mais de 95% de pessoas infetadas que permanecem em suas casas e com evidente carência de um modelo de acompanhamento que lhes proporcione a resposta adequada.

Em suma, é por demais sabido que precisamos de adequar as respostas às atuais características e necessidades da população. Precisamos mudança com inovação. Os enfermeiros colocam-se desde já na linha frente para contribuírem para a mesma.

Assim e porque entendemos que a sociedade e a Enfermagem não são realidades estáticas pelo que, as profissões em geral e a Enfermagem em particular por ter por base uma disciplina do conhecimento, precisam de se (re)questionar em cada momento considerando a adequação do serviço que prestam às necessidades das pessoas.

A Enfermagem, bem como qualquer outra profissão, existe para prestar um serviço à sociedade e apenas existirá se e enquanto aquela a considerar útil. Urge uma reflexão que não feche a profissão sobre si mesma, que seja otimista e construtora de significado social quer no presente quer no futuro.

Propomos por isso um novo pacto à sociedade portuguesa, assumindo igualmente o valor e importância das diferentes organizações da profissão, desde sindicais, associativas e de regulação, e estamos disponíveis para o discutir com todas as forças vivas e organizações sociais, nomeadamente com todas as forças políticas democráticas.

Deixamos apenas alguns desafios, sendo que o contexto enquadrador de todos eles é o enquadramento demográfico e epidemiológico atrás referido e a perspetiva da economia do bem-estar. Desta, destacamos particularmente o seu terceiro objetivo: apoiar pessoas e comunidades saudáveis e resilientes de modo a proporcionar-lhes condições de dignidade, um sentido de ligação e pertença e acesso aos meios que apoiam as suas necessidades humanas básicas, incluindo o apoio ao bem-estar físico, psicológico, emocional, social e espiritual.

Neste contexto, propomos:

1- À sociedade como um todo: garantir a equidade no acesso aos cuidados de saúde, tal como a Constituição o define, através,

a) da liderança de mudanças organizacionais congruentes com a centralização dos cuidados na pessoa e no seu contexto sociofamiliar, e com a integração e continuidade de cuidados;
b) da liderança no desenvolvimento de modelos de cuidados que privilegiem a perspetiva atrás apresentada e que transfiram o local preferencial dos cuidados para casa das pessoas, principalmente nas situações de multimorbilidade crónica e dependência;
c) do assumir o autocuidado e a literacia como pilares essenciais de todos os processos de cuidados, mas particularmente daqueles em que prevaleça a multimorbilidade e dependência.

2- Ao poder político: contribuir para a sustentabilidade dos serviços públicos de saúde,

a) assumindo a transdisciplinaridade e transprofissionalidade como desiderato, numa relação interpares, focada na procura das melhores respostas às necessidades das pessoas;
b) aproveitando integralmente as competências instaladas, em prol do bem-estar das pessoas, e através do desenvolvimento de estratégias de partilha e combinação de funções, compatíveis com as melhores práticas internacionais;
c) criando indicadores de resultados em saúde e demonstrando a efetividade das intervenções;
d) liderando a introdução das Tecnologias da Informação e Comunicação nos modelos de cuidados, exigindo-as ao serviço das pessoas e dos seus cuidadores;
e) promovendo uma estratégia ativa de valorização social dos enfermeiros enquanto profissão essencial à saúde e bem-estar das pessoas.

3- Às Escolas: criando uma comunidade aprendente que,

a) assuma um compromisso, que envolva a academia e os contextos clínicos, de desenvolver a investigação necessária à criação dos modelos atrás referidos;
b) desenvolva uma estratégia de proximidade entre os contextos clínicos e a academia promotora da miscigenação dos processos de investigação e de aprendizagem, que garantam formação e desenvolvimento ao longo da vida, sendo esta a base da correspondente valorização profissional e social;
c) afirme que à academia cabe a diversidade da formação, não subjugada a modelos uniformes de ensino que procuram responder a lógicas meramente corporativas, outrossim intrinsecamente ligada a modelos de desenvolvimento da profissão, da disciplina, da transdisciplinaridade, da inerente criatividade às metodologias pedagógicas e das necessidades das pessoas e da sociedade.

4- Aos enfermeiros: promovendo uma classe profissional prestigiada,

a) com uma prática regida por rigorosos padrões éticos e deontológicos, norteada pelo respeito pela dignidade das pessoas e assente numa relação de confiança;
b) sustentada na evidência empírica e ao serviço das pessoas;
c) assertiva na sua postura;
d) preocupada com os que mais precisam e defensora dos que não têm voz;
e) sem ambivalência de estatuto quer nas organizações privadas, quer na organização pública da profissão, cumprindo a responsabilidade social de promover a confiança pública na profissão de Enfermagem;
f) envolvida na conceção de que a Enfermagem pode e deve influenciar as políticas públicas de saúde promotoras da saúde e bem-estar das pessoas e comunidades, participando ativamente na sua formulação, implementação e avaliação.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

Subscritores

Manuel Lopes
Jorge Pires
Belmiro Rocha
Mário André Macedo
Neuza Reis
Sofia Roque
Liliana Barroso
Joana Pires
Helena Rebelo
César Fonseca

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