Terá o “vírus chinês” chegado também a Portugal?

Os tempos que se aproximam serão tanto menos difíceis quanto mais informados, solidários, cooperativos e justos formos uns com os outros. Estamos certos disso.

1. O Presidente do país mais poderoso do mundo refere-se ao novo coronavírus da pandemia covid-19 como o “vírus chinês”. Insiste nessa expressão com o propósito evidente de fazer crer que “a culpa é sempre deles, nunca nossa”. Ora, no momento em que, previsivelmente, chegamos à época do ano em que situação pandémica poderá agravar-se em Portugal, surgem, aqui e ali, sinais preocupantes do “passa-culpas chinês” também alastrar entre nós.

2. Quando, há seis meses atrás, fomos “todos para casa”, só discordaram aqueles que pensavam que fomos tarde de mais. Rapidamente, percebemos que essa postura, radicalmente defensiva, julgada necessária, trazia consigo um pesado custo individual, familiar, social e económico. Não era sustentável – era preciso desconfinar. Nunca tínhamos desconfinado antes. Seria preciso aprender, errar e aprender de novo. Havia que relativizar. Isto é, temos que proteger as pessoas da doença pandémica e, ao mesmo tempo, abrir as escolas e a economia, proteger os mais novos e os mais velhos sem os remeter ao isolamento prolongado e à solidão, atender e tratar os doentes não-covid​ como antes. Para isto tudo não há uma fórmula preestabelecida. É necessário juntar múltiplas peças de distintos tipos de conhecimento, analisar interações negativas e positivas e exercer um juízo informado. Qualquer destas decisões implica riscos, naturalmente. É, portanto, necessário aprender a minimizar esses riscos.

3. Portugal decidiu fechar as escolas quando tínhamos cerca de 80 novos casos/dia e vai abri-las de novo quando teremos cerca 400. Porque é importante abrir as escolas – mas alguém tem que gerir os riscos associados a essa abertura. Fechámos as fronteiras com Espanha na primavera e mantemo-las abertas no verão, quando no país vizinho se observam cerca de 10.000 novos casos/dia. Regozijamo-nos com abertura do corredor turístico inglês, sabendo que acolhemos turistas de um país onde se observam 3000 novos casos/dia. Porque o turismo é importante para a nossa economia – mas alguém terá que multiplicar-se para responder a mais este desafio. Proibimos festivais e iniciativas afins até finais de Setembro, mas a lei que o fez permite exceções de carater político, religioso ou social. Porque é importante sermos flexíveis – mas alguém terá que gerir os riscos associados a esta permissividade.

4. A escola, o lar de idosos, o hospital e o centro de saúde, o restaurante do turista e a festa não são estórias estanques de cronistas inspirados, mas realidades complexas que se interpenetram numa mesma comunidade. Os que têm como responsabilidade proteger a saúde dessas comunidades fá-lo-ão o melhor que podem. Não no mundo da fantasia-sem-contexto, mas no ambiente próprio da Administração Pública portuguesa de hoje, com as conhecidas dificuldades de recursos, de organização, de capacidade estratégica, de instrumentos de informação e comunicação e de dispositivos de integração entre-organizações. Ou há outra forma de o fazer?

5. Vale criticar tudo aquilo que não está bem e que pode ser melhorado. Fazemo-lo também. Mas acrescentando, não destroçando. Construindo, não destruindo. Com propostas, apoios e contribuições concretas que ajudam a fazer melhor. Mas sem dar asas à ingratidão, ao juízo fácil e mal informado, ao apontar-o-dedo leviano, à desonestidade intelectual, à insensatez até ao insulto. Este vírus não é chinês. É, perigosamente, apenas de alguns de entre nós.   

Os tempos que se aproximam serão tanto menos difíceis quanto mais informados, solidários, cooperativos e justos formos uns com os outros. Estamos certos disso.

Francisco George, ex-director Geral da Saúde
Constantino Sakellarides, ex-director Geral da Saúde

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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