Orientações da DGS violam direitos fundamentais das crianças e jovens em acolhimento residencial

Na prática, levada à letra a orientação, se uma criança tiver de se deslocar uma vez por mês ao hospital para fazer tratamentos (não sendo a doença relacionada com o vírus), terá de cumprir 42 dias de isolamento num período de três meses, mesmo em caso de inexistência de teste positivo.

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PAULO PIMENTA / PUBLICO

A orientação n.º 009/2020 da DGS de 23 de Julho, relativa a procedimentos a cumprir pelas casas de acolhimento de crianças e jovens em perigo no sentido de conter a propagação do vírus SARS-Cov-2, constitui um dos maiores ataques aos direitos e ao bem-estar das crianças e jovens nas últimas décadas em Portugal e tem gerado uma justificada indignação da opinião pública nos últimos dias, desde que foi noticiada no PÚBLICO a queixa feita pela Comissão Instaladora da AjudAjudar à Provedoria de Justiça.

Na sequência desta orientação, as crianças e jovens em acolhimento residencial estão sujeitas às seguintes medidas:

1) Após a retirada à família para sua proteção ou no caso de transferência de outra instituição, as crianças e os jovens entram na casa de acolhimento sem a presença de um familiar ou do técnico que os acompanha, sendo obrigados a ficar isolados, sozinhos num quarto, por 14 dias, mesmo que o seu teste à covid-19 seja negativo e não apresentem qualquer sintoma da doença;

2) Sempre que se ausentem da casa de acolhimento para realizar tratamentos ou por precisarem de assistência médica terão de cumprir um período de isolamento de 14 dias, mesmo que a saída seja por um período inferior a 24 horas, sem que neste caso façam teste. No caso da saída da casa de acolhimento com tal finalidade ser por mais tempo, a criança ou jovem tem de fazer o teste da zaragatoa e ficar em isolamento por 14 dias, ainda que o resultado do teste seja negativo e não apresentem sintomas, atendendo a que lhes são aplicadas as mesmas medidas restritivas da liberdade de movimento impostas aos residentes em Lares de Idosos [1].

Sobre a primeira situação de isolamento já muito se falou nos últimos dias, mas a segunda passou praticamente despercebida na discussão pública, sendo igualmente gravíssima.

Na prática, levada à letra a orientação, se uma criança tiver de se deslocar uma vez por mês ao hospital para fazer tratamentos (não sendo a doença relacionada com o vírus), terá de cumprir 42 dias de isolamento num período de três meses, mesmo em caso de inexistência de teste positivo e de ausência de sintomas da doença covid-19. No aludido exemplo, a criança perderia seis semanas de aulas nesse período, ficando irremediavelmente prejudicada no seu percurso educativo relativamente às demais crianças que não se encontram em acolhimento residencial, já para não falar nos gravíssimos problemas de saúde mental que tal cenário implicaria.

E, neste ponto, pergunta-se: que sentido faz aplicar o isolamento às crianças recém-chegadas à casa de acolhimento ou ainda àquelas que, por razões de força maior, se tenham de deslocar ao hospital se as demais crianças da instituição continuam a sair da casa para ir à escola, conviver com familiares nos termos autorizados pela CPCJ ou pelo Tribunal ou para atividades de lazer, correndo riscos de infeção? Que sentido faz que o isolamento seja aplicado à criança que, quando na instituição, se tenha de deslocar ao hospital e não quando regresse de casa dos pais que foi visitar num fim-de-semana ou nas férias em que, por qualquer infortúnio, também tenha tido de ir ao serviço de urgências sem o conhecimento da casa de acolhimento? Nenhum sentido, obviamente.

Por isso, a orientação — a qual não prevê visitas a familiares ou outras figuras de referência no exterior da instituição, só as autorizando no interior da casa nos termos restritivos definidos na Orientação 011/2020 — tem sido interpretada (embora, felizmente, não aplicada pela maioria das casas de acolhimento) como proibindo quaisquer deslocações das crianças ao exterior da instituição, na medida em que tais deslocações implicariam, nesse entendimento, o isolamento da criança ou do jovem pelo período de 14 dias.

Eis por que razão a Orientação da DGS exige o isolamento de 14 dias, não apenas às crianças e jovens que dão entrada numa casa de acolhimento e àqueles que tenham de se deslocar ao hospital, mas também ameaça com o confinamento social no interior da instituição todas as crianças e jovens aí residentes, impedidas que ficariam, nesse entendimento, de ter aulas presenciais no início do ano letivo, de irem a casa nos termos autorizados pela CPCJ ou pelo tribunal, de brincarem no exterior da casa de acolhimento e de conviverem com os amigos [2].

Só nesse entendimento o objetivo desta Orientação da DGS — proteger os cuidadores e assegurar o regular funcionamento da Instituição (ponto 1) do diploma — seria alcançado e as diretrizes fariam sentido. Um sentido sinistro que impossibilitaria as crianças e jovens em acolhimento residencial de manter um estilo de vida comparável, na medida do possível, ao de outras crianças, impedindo-as de passear, brincar no exterior, ir à praia, praticar desporto, estar com amigos, visitar a família ou mesmo ir à escola.

Como a última versão da orientação da 009/2020 assume, as crianças e jovens não são população de risco, logo estas medidas extremas não se destinam a proteger os próprios, mas a minimizar, como, de resto, admitido pela DGS — em absoluta contradição com o artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos das Crianças [3] — a possibilidade das crianças e jovens funcionarem como agentes transmissores do vírus. Sublinhe-se neste ponto que os cuidadores entram e saem diariamente da casa de acolhimento, sem necessidade de fazer teste à presença do vírus ou cumprir 14 dias de isolamento.

Estas medidas de isolamento aplicadas às crianças e jovens em acolhimento residencial, mostram-se absolutamente desproporcionadas, sendo manifestamente prejudiciais para as crianças e jovens em situação de particular vulnerabilidade, aplicando-se, para mais, indiscriminadamente a bebés, crianças com défices desenvolvimentais, problemas de saúde mental, perturbações comportamentais... Por outro lado, ao poderem impossibilitar um contato presencial, normalizado e regular com as famílias, estas medidas comprometem seriamente a concretização do projeto de vida/projeto de promoção e proteção destas crianças e jovens, quando este pressupõe a reintegração familiar. Ao dificultarem a possibilidade de avaliar de forma eficaz a qualidade da relação da criança com a família de origem e as suas competências parentais, atrasam uma eventual constatação da necessidade de encaminhamento para adoção/apadrinhamento civil. Finalmente, ao impedirem na prática, as saídas da casa de acolhimento e uma vivência normalizada em comunidade, dificultam o processo de autonomização no sentido de uma melhor integração progressiva na vida adulta e na comunidade.

Respeitando os direitos fundamentais das crianças e jovens, outros países não estão a aplicar estas medidas de isolamento em caso de teste negativo à covid-19. Assinale-se, também, que o Tribunal Constitucional, já em diversas decisões, declarou a inconstitucionalidade das normas que impunham o isolamento em situação análoga a passageiros que aterrassem nos Açores, declarando, por exemplo, no acórdão 424/2020 de 31/7, que, nos casos de teste com resultado negativo, tal medida, “constituindo uma pena curta de prisão”, não era autorizada fora do contexto de estado de emergência e sem Lei de autorização da Assembleia da República.

Atendendo que as medidas definidas nesta orientação constituem uma violação flagrante e grosseira dos direitos à liberdade, ao convívio com a família, à educação, ao brincar e ao acesso à Justiça [4] das crianças e jovens em acolhimento residencial, discriminando-os negativamente relativamente aos restantes cidadãos, a comissão instaladora da futura associação AjudAjudar — Associação para a Promoção dos Direitos das Crianças e Jovens, continua empenhada em trazer a público as preocupações que nos levanta a Orientação da DGS 009/2020 de 23 de Julho, no que diz respeito à sua aplicação às casas de acolhimento e à salvaguarda dos direitos constitucionais destas crianças e jovens, tendo endereçado uma queixa à Provedora de Justiça da qual se aguardam as consequentes recomendações.

Pretendemos que tais orientações garantam o respeito absoluto pelos direitos das crianças em acolhimento residencial, o que implica envolver outras entidades e organizações, bem como especialistas na área do acolhimento residencial, no processo de elaboração das mesmas, como forma de acautelar a salvaguarda de tais direitos.

[1] A referida segunda situação de isolamento em caso de deslocação ao hospital encontra-se prevista no ponto 4) da orientação, sendo aplicável às casas de acolhimento de crianças e jovens em perigo por força do seu ponto 10), de acordo com o qual: “Em relação às instituições de crianças e jovens em risco, aplicam-se as recomendações desta orientação descritas para as instituições que recebem pessoas idosas.”

[2] Note-se que as casas de acolhimento em Portugal são em regime aberto, podendo as crianças e jovens em acolhimento residencial sair da instituição de acordo com as regras de funcionamento da mesma, bem como com as decisões da CPCJ e do tribunal (nomeadamente, quanto a convívios aos fins-de-semana e nas férias com os familiares ou outras figuras de referência).

[3] Segundo o qual, quaisquer decisões administrativas ou judiciais relativas a crianças terão de atender primacialmente ao seu superior interesse.

[4] A orientação não prevê qualquer comunicação obrigatória ao processo de promoção e proteção da colocação em isolamento das crianças e jovens em acolhimento residencial, o que impede as CPCJ ou o Ministério Púbico e o Juiz de sindicarem tal decisão, bem como de garantirem o direito de defesa de tais crianças e jovens perante tal medida restritiva da sua liberdade.

Pela Comissão instaladora da AjudAjudar: Sónia Rodrigues, Tito de Morais, João Pedro Gaspar, Tânia Mealha, Márcia Lemos, Eduarda Castro, Luís Pinho Fernandes, Vânia Pinto, Sofia Neves, Joana Antão, Francisca Pimentel, Pedro Teixeira, Catarina Ribeiro e Alfredo Sá Cunha​

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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