Trabalhadores nos EUA proibidos de acusar empresas se adoecerem com covid-19

Medida é uma exigência do Partido Republicano para aprovar um segundo pacote de estímulos à economia. Sindicatos dizem que as próprias empresas vão ser prejudicadas por não transmitirem segurança aos seus clientes.

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Num matadouro no estado do Dakota do Sul houve mais de mil casos e duas mortes Reuters/Shannon Stapleton

Os milhões de trabalhadores que começaram a regressar aos seus postos de trabalho nos Estados Unidos, após semanas de quarentena devido à pandemia da covid-19, vão ser impedidos de levar os seus patrões a tribunal se forem infectados com o novo coronavírus. Numa reacção à medida, imposta pelo Partido Republicano, os sindicatos avisam que muitos clientes vão perder a confiança nas regras de segurança das empresas, o que pode adiar a retoma económica no país.

A proibição do recurso aos tribunais foi anunciada esta semana pelo líder da maioria do Partido Republicano no Senado, Mitch McConnell, no início das negociações para um segundo pacote de estímulos à economia. 

“A existir alguma linha vermelha, é a litigância”, disse McConnell. “A epidemia da litigância já começou. No fim da semana passada, um relatório dava conta de que já tinham chegado aos tribunais 771 processos. Isto vai prejudicar a nossa capacidade para começarmos a regressar ao trabalho”, disse o líder republicano.

Para o Partido Republicano, a aprovação pelo Senado de um segundo pacote de estímulos à economia vai depender dessa protecção legal às empresas. “Sem ela, [o pacote] não será aprovado”, afirmou McConnell, respondendo com a sua própria linha vermelha a uma exigência do Presidente Donald Trump para promulgar um novo pacote de estímulos. No domingo, o Presidente norte-americano afirmou que só aceitará uma proposta do Congresso que inclua um corte dos impostos nos recibos de vencimento dos trabalhadores, algo que o seu Partido Republicano rejeita.

"É o faroeste"

A proibição do recurso aos tribunais por quem for infectado com o novo coronavírus no seu posto de trabalho é defendida pela Câmara de Comércio dos Estados Unidos, um grupo de pressão que reforçou os seus investimentos em campanhas eleitorais e outras acções políticas desde a crise financeira de 2008 e que é hoje a organização que mais dinheiro gasta em lobby – 77 milhões de dólares em 2019 e 21 milhões nos primeiros três meses de 2020, segundo o site OpenSecrets.

O vice-presidente executivo da Câmara de Comércio, Neil Bradley, disse à rádio norte-americana NPR, na terça-feira, que “ninguém quer proteger pessoas com más intenções”.

“As empresas que estão a tentar fazer as coisas certas não devem ser acusadas num tribunal daqui a um ano. E as que obrigarem os funcionários a trabalhar em condições perigosas, perdem essa protecção legal”, sublinhou o responsável, garantindo que as referências para as empresas são as determinações dos Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) e da agência que inspecciona as condições de trabalho nos Estados Unidos (OSHA).  

Mas os sindicatos e as associações comerciais dizem que as referências existentes são insuficientes e confusas. “É o faroeste”, disse à NPR, na semana passada, o presidente da Consumer Brands Association, que representa algumas das maiores empresas de alimentos e bebidas do mundo. “O Governo federal, em particular o CDC e a OSHA, estão a falhar na emissão de regras claras e específicas, que são necessárias para se encorajar uma adopção consistente em todo o país.”

Matadouros sem regras

A queixa da falta de regras universais para a protecção dos trabalhadores e, agora, a proibição do recurso aos tribunais em caso de infecção pelo novo coronavírus, levam os sindicatos norte-americanos e os grupos de defesa dos direitos dos consumidores a avisarem que o resultado vai penalizar as próprias empresas.

“Se as leis derem imunidade às empresas, elas não terão nenhum incentivo para garantirem a criação de um ambiente de trabalho seguro”, disse à NPR Remington A. Gregg, do grupo Public Citizen, uma associação de defesa dos direitos dos consumidores. “Vai sabotar o esforço para o regresso dos trabalhadores e dos consumidores. Se as pessoas não confiarem nas condições de segurança nas lojas e escritórios, vão recusar-se a regressar.”

A principal preocupação centra-se nos matadouros norte-americanos, que estão no topo dos maiores casos de contágio em ambiente de trabalho desde o início da pandemia do novo coronavírus, ao lado das prisões e dos lares de terceira idade. Só num matadouro da empresa Smithfield Foods, no estado do Dakota do Sul, que emprega 3700 trabalhadores, mais de mil foram infectados desde Março e dois morreram com covid-19.

“O que devia aterrorizar toda a gente nesta história é que o primeiro homem a morrer [no matadouro da Smithfield Foods] continuou a trabalhar mesmo tendo sintomas de coronavírus”, disse Gina Neff, professora de Sociologia na Universidade de Oxford, na rede social Twitter.

“O matadouro da Smithfield ofereceu um ‘bónus de responsabilidade’ de 500 dólares [463 euros] aos trabalhadores que não falhassem um turno no mês de Abril. A última coisa que queremos numa pandemia global é que os empregadores paguem aos funcionários para trabalharem quando estão doentes. Isso é um bónus de irresponsabilidade”, disse Gina Neff.

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