Jogos sem adeptos: “Tudo muito cinzento e frio. A antítese do futebol”

A experiência de participar em estádios sem público nas palavras de treinadores, jogadores e árbitros.

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O jogo Valência-Atalanta, disputado há cerca de dois meses, na Champions, decorreu à porta fechada Reuters

“O futebol sem adeptos não é nada”, disse em tempos Jock Stein, treinador escocês que foi campeão europeu em Lisboa com o Celtic. Mas, num mundo envolvido pelo novo coronavírus, é provável que este futebol que não é nada seja o único que tenhamos nos próximos tempos. Um pouco por todo o mundo, Portugal incluído, discutem-se cenários de regresso aos relvados e muitos deles incluem a componente “porta fechada”. Terá tudo o que um jogo precisa para ser jogado - jogadores, treinadores e árbitros - e visto na televisão - operadores de câmara, comentadores, técnicos de som. Mas não terá adeptos, nem os seus gritos, assobios e palmas. Sem o movimento e a cor. Sem a paixão.

No princípio da pandemia, ainda se fecharam portas em algumas latitudes do futebol europeu. O Valência-Atalanta, para a Liga dos Campeões, foi um desses jogos e teve mais golos que espectadores nas bancadas do Mestalla, um 3-4 para os italianos. Gonçalo Guedes fez toda a segunda parte e as suas palavras após esse jogo são o testemunho de como os adeptos são o combustível emocional das equipas, para o bem e para o mal. “Um jogo difícil, estranho. Seria sempre um jogo especial, mas estarmos sozinhos, foi terrível. Apesar de estarmos a fazer o nosso trabalho, jogamos para as pessoas”, testemunhava o avançado português do Valência no início de Março.

“É tudo muito cinzento, muito frio. É a antítese do futebol”, recorda ao PÚBLICO o antigo árbitro Duarte Gomes, sobre o Dínamo Zagreb-Pyunik que dirigiu em 2009 na capital da Croácia, a contar para a segunda mão da segunda pré-eliminatória da Liga dos Campeões. Qualquer som no velho Estádio Maksimir se transformava num gigantesco eco, conta o antigo árbitro internacional. “Ouve-se tudo. Naquele caso, era um estádio velho, grande, uma acústica enorme, o eco era enorme. Qualquer assobio tinha um eco tremendo. É uma coisa muito estranha. Imagino um jogo assim na Luz ou em Alvalade ou no Dragão, deve ser muito deprimente. Os jogos ficam diferentes. O aplauso, o assobio... Esse empurrão faz falta. Até senti falta de ser insultado.”

Para Duarte Gomes, o jogo de Zagreb, à porta fechada como punição pelo comportamento dos adeptos do Dínamo, foi caso único na carreira, mas Manuel José habituou-se a esse cenário no futebol egípcio, onde passou quase uma década a conquistar títulos no Al-Ahly. “Na altura, o Estádio Internacional do Cairo levava 100 mil pessoas. E passar disto para um estádio completamente vazio... O facto motivação e capacidade de superação, isso sobe imenso com a presença do público. Tudo isso deixa de existir. Uma coisa insonsa, que não estimula. Essa comunhão entre os espectadores e o público é fundamental”, diz o experiente treinador português, que tem passado as últimas semanas sem abdicar das suas caminhadas terapêuticas, mas longe das pessoas, com luvas, máscara e um frasquinho de álcool no bolso.

E como é marcar um golo num jogo sem pessoas? Palavra a Hugo Almeida, que jogou num Giuseppe Meazza sem ninguém com a camisola do FC Porto num jogo da Liga dos Campeões, em 2005. O internacional português era, então, um jovem avançado a tentar ganhar o seu espaço e tinha, frente ao Inter, uma das suas primeiras presenças no “onze” dos “dragões”. “Era um jogo importante para mim e para o FC Porto e, por isso, a motivação estava em alta. Mas não é fácil. Há sempre um desleixo. Parece um daqueles jogos de treino que não está ninguém. É preciso estar muito concentrado. Para nós até era melhor porque não tínhamos os adeptos adversários. Mas é um vazio enorme que se sente. O futebol vive das pessoas”, recorda o avançado, que colocou o FC Porto em vantagem nesse jogo, com um golo de livre directo aos 16’.

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O momento pós-golo de Hugo Almeida em Milão REUTERS/Stefano Rellandini

Foi com uma bomba de pé esquerdo, bem longe da baliza de Júlio César, que Hugo Almeida colocou o FC Porto na frente (o Inter, com Figo, viria a dar a volta e ganhar por 2-1). “Um golo é sempre um golo, seja com ou sem adeptos, mas é uma sensação diferente. Só festejas tu e os teus companheiros. Com um estádio cheio, há uma multidão a gritar e há mais emoção”, diz Hugo Almeida, que recentemente anunciou o final de carreira. Depois desse jogo em Milão, o antigo avançado iria habituar-se aos jogos à porta fechada quando esteve no futebol turco, ao serviço do Besiktas: “Eram tantas as vezes que jogávamos com os estádios vazios que a federação turca permitia só mulheres ir ao estádio, e não os homens.”

Máscaras em Mafra

Em Portugal, há muitos jogos que não precisam de ser à porta fechada para não terem público, como conta o antigo árbitro Pedro Henriques. “Era um jogo a uma segunda-feira, um União de Leiria-Gil Vicente, em Leiria. Olhei para o ecrã e dizia 300 e tal espectadores. Até se ouvia uma pessoa a descascar amendoins. Para um árbitro, o barulho ensurdecedor desconcentra. Estamos habituados a funcionar em outro ambiente. Tínhamos de nos motivar a nós próprios”, conta Pedro Henriques.

Homem de larga experiência nos bancos do futebol português, Filipe Moreira esteve dois jogos esta época em que o Vilafranquense não teve público em dois dos seus jogos em “casa emprestada” em Rio Maior. “Nós vivemos neste mundo com emoção e, na altura da competição, queremos sentir esse ambiente. Até o chamar nomes sentimos falta. Ninguém que goste do jogo fica a gostar daquilo. Uma experiência pesada e negativa, não é bom para o futebol. É perturbador não ouvir o ruído dos outros”, é como o experiente treinador recorda esses momentos.

E tudo se houve, acrescenta Filipe Moreira. “Tivemos um jogo na época passada em Leiria na fase final. O grito do treinador tem mais ênfase. Os adeptos que estavam fora do estádio diziam-me, ‘Ó mister, só o ouvíamos a si. Parece que estávamos a ouvir um relato”, conta o actual treinador do Olhanense, que, em conversa com o PÚBLICO, recordou ainda um episódio de 2009 quando era treinador do Mafra, em que ele e a sua equipa entraram em campo com máscaras cirúrgicas, tal como equipas no Brasil e na Nicarágua fizeram em 2020 como forma de protesto por serem obrigados a jogar em plena pandemia: “Foi na semana em que apareceu a gripe das aves. O Mafra teve vários jogadores afectados. E no jogo com o União da Madeira para a Taça, entrámos todos de máscara. Foi uma forma de dizermos aos outros, vamos entrar em campo mas não estamos seguros. Mas foi só na apresentação. Não jogámos de máscara.”

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