Tempo de perguntar aos poetas

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Também se criou essa ideia de que é preciso tocar, é preciso andar bem-disposto, é preciso ter filhos... A ditadura da felicidade. Que é como a ditadura do consumo. E há uma coisa que se perdeu um pouco, que foi o tempo para pensar.” Coimbra de Matos, psicanalista português

“Que cantam os poetas andaluzes?”

Um dos grandes poemas de um dos grandes poetas espanhóis, Rafael Alberti, serve ao El Diario para saber o que andam a criar os poetas andaluzes no isolamento imposto pela pandemia (e assim encher um pouco as páginas de cultura do jornal, à míngua com a suspensão da criação artística). “Dediquei muitos poemas a mulheres que caminham e agora vejo-me parada, com uma maldição em cima”, conta Aurora Luque, uma das inquiridas. Em tempos ímpares, com medidas de excepção, olhamos para quem se habituou a fechar-se em si próprio e reflectir sobre o mundo à volta, como lanterna para nos guiar neste recolhimento forçado. Dizemos para nós que os poetas devem possuir antenas especiais para apanhar na algaraviada do universo as palavras certas para perceber os tempos. “Essa redução ao essencial, acho que pode ser positiva, não apenas para os poetas, para toda a gente; limpar um pouco o calendário e procurar o verdadeiramente necessário para viver: Isso é o que tenta fazer um poeta toda a vida, mas agora vai toda a gente fazê-lo”. Talvez nos ajude a perceber que a felicidade, tal como a liberdade, são conceitos que se concretizam na negativa, como explica Carmen Camacho: “A liberdade é não ter correntes e a felicidade não ter os sapatos cheios de pedras” ao caminhar.

Pandemia de preguiça

A Levi Telleman apanhou-o a pandemia em Genebra, cidade para onde se mudou apenas em Dezembro. Infectado com o coronavírus num lugar a que ainda não teve tempo de chamar seu, o antigo consultor do Departamento de Energia dos Estados Unidos durante a Administração Obama lembra, num artigo para a Wired, o livro do Nobel da Economia Daniel Kahneman Pensar, Depressa e Devagar, onde este nos explica que o nosso cérebro está sempre a fazer-nos cair na mesma armadilha: perante o mundo que gira a grande velocidade, cada um de nós, enquanto ser humano, não toma decisões depois de uma análise racional de todas as premissas e pesando os prós e contras, antes confia “numa estrutura utilitária, simplificada e muitas vezes imprecisa de suposições e heurísticas” para escolher o caminho. Segundo Kahneman, todos nós temos dois sistemas de pensar, o primeiro é rápido, intuitivo e afectado pelas emoções, uma “máquina de conclusões precipitadas”; o outro, lento e racional, analisa o primeiro e tenta perceber o mundo de forma ponderada. O problema do segundo é que sendo lento também é preguiçoso e está sempre muito tentado a alinhar com o primeiro. A pandemia do coronavírus seria o resultado desses pressupostos generalizados errados sobre a economia e as instituições.

Vá para fora cá dentro

Numa colina sobranceira a Austin, Texas, o Blue Starlite ganhou uma dimensão de paraíso perdido em tempo de isolamento forçado. No cinema drive-in de Josh Frank, os texanos podem ver filmes ao ar livre sem sair dos seus carros. No dia em que o fotógrafo do New York Times passou por lá, exibia-se O Grande Lebowski, dos irmãos Cohen. Esta terça-feira passaram as curtas-metragens programadas para o famoso festival South by Southwest, entretanto cancelado. “Faz todo o sentido” pegar no carro e ir até ao cinema, conta Jen Philhower, que havia deixado de vir com os três filhos à medida que estes cresciam e se afastavam dos programas em família. A irritação e a monotonia de um isolamento domiciliário que os impede de contactos físicos para lá do agregado familiar, levou-os a regressar ao Blue Starlite. Os drive-ins são lugares que o mundo se habituou a conhecer dos filmes americanos de meados do século XX, produto óbvio de uma sociedade onde o automóvel joga um papel central, foram entrando em declínio à medida que a tecnologia mudava a forma de ver cinema. De omnipresentes na paisagem dos EUA, restam apenas 305. “Quem diria que ver filmes num drive-in voltaria a ser a opção mais atractiva para sair?”, pergunta Josh Frank, o proprietário do Blue Starlite.

Um povo que morre

Kawésqar é um povo nómada do sul do Chile, os seus membros sempre estiveram habituados a percorrer nas suas canoas os canais da Patagónia ocidental e das ilhas a ocidente da Terra do Fogo, o golfo de Penas e o estreito de Magalhães. Restam na actualidade umas dezenas, daí que a morte de Carlos Renchi, um dos poucos kawésqar que ainda falavam a língua do mesmo nome, se torne num acontecimento: infelizmente por ser um degrau mais no desaparecimento de um povo e de uma língua. Renchi morreu amargado, lutador incansável contra as injustiças do Estado chileno para com os seus indígenas, continuou a acreditar até ao fim que a comunidade é mais importante que o indivíduo. A filha, María Luisa Renchi Navarino, confessou ao El Desconcierto, que o pai “viveu com muito rancor e impotência no coração”. Nunca conseguiu compreender “porque as pessoas eram tão egoístas, tão pouco empáticas com os kawésqar”. Carlos Renchi nunca aprendeu a ler, nem escrever, enganado muitas vezes por empregadores sem escrúpulos que abusavam da sua vontade de trabalhar. A sua filha desabafa: o Chile continua a não reconhecer o “genocídio em relação ao nosso povo, nem nenhuma reparação para os seus membros, mas continua o assistencialismo, o que nos impede de ser sujeitos de direito”.

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