O vírus que está a matar a globalização

Vale a pena ler, ou reler, A Peste Escarlate de Jack London e reflectir sobre a fragilidade das sociedades humanas que se podem esvair como “a espuma do mar”.

1. “O trabalho do homem é efémero e esvai-se como a espuma do mar…” Esta é uma das frases mais marcantes da distopia escrita em 1912 por Jack London, pseudónimo literário de John Griffith Chaney, A Peste Escarlate (The Scarlet Plague no título original em língua inglesa). A par do britânico H. G. Wells (Herbert George Wells), criador de obras como A Máquina do Tempo (1895) ou A Guerra dos Mundos (1898), Jack London foi um dos pioneiros do género ficção científica e de distopias que imaginam para a humanidade um futuro pós-apocalíptico.

Na Peste Escarlate, a narrativa ficcional decorre à volta de uma pandemia (o termo não era usado na época) originada por uma bactéria extremamente contagiosa e mortal, que este situou no ano 2013. O enredo tem como personagem central um octogenário professor de Literatura Inglesa da Universidade da Califórnia, em Berkley, James Howard Smith, um dos escassos sobreviventes dessa catastrófica pandemia que destruiu toda a civilização humana. Ao longo do livro, James Howard Smith relata os extraordinários acontecimentos por si vividos no início do século XXI, aos seus vários netos. Estes com ouvem-no com um misto de curiosidade, incredulidade e incompreensão — há muitas palavras e realidades que desconhecem totalmente. Para eles, a realidade humana normal é o ‘estado de natureza’ uma vez já nasceram após colapso civilizacional.

2. Há paralelismos estranhos e algo perturbadores entre o imaginário ficcional de Jack London de há um século e a realidade social e económica hoje vivida com a pandemia da covid-19. No início, “ninguém se alarmou excessivamente. Houvera poucos mortos; as mortes, porém, foram rápidas ao que parece” (A Peste Escarlate, trad. port., Quasi, 2008, p. 37). Nessa altura, existia uma grande confiança na ciência médica pelo que “nós, na Califórnia, assim como por toda a parte, não nos afligíamos em excesso. Todos acreditavam que os bacteriologistas achariam meio de aniquilar o novo germe, como já tinham feito, no passado, quanto a outras doenças” (p.38).

Na distopia de Jack London, a confiança da sociedade na ciência e no progresso da medicina era muito elevada no início do século XXI. Todavia, essa confiança rapidamente se desvaneceu, dando lugar pânico e ao descontrolo social, pelo alastrar mortífero do novo germe, infectando cada vez mais seres humanos. “O que, porém, se tornava inquietante era a rapidez prodigiosa com que o germe destruía os homens; […] Podia-se estar uma noite à mesa com uma pessoa de boa saúde, e, no dia seguinte, levantar-se cedo e chegar à janela… para ver passar o caixão do nosso comensal da véspera!” (idem). Na distopia, as consequências conjugadas do falhanço da ciência, dos poderes públicos lidarem adequadamente com a pandemia e do pânico social instalado foram aterradoras: paralisia nos transportes, ruptura do abastecimento de bens e serviços, seguida eclosão de pilhagens e violência generalizadas que levaram ao colapso total.

3. Uma das coisas mais curiosas da ficção de Jack London é também a localização dos acontecimentos na Califórnia, na cidade de São Francisco e área envolvente — no que hoje é usualmente designado por San Francisco Bay Area. Na proximidade está também Silicon Valley. Como é bem conhecido, esta é uma das áreas económicas e tecnológicas mais importantes dos EUA e do mundo. Empresas fundamentais para a actual globalização e sociedade em rede, como a Google, o Twitter, o Facebook, o eBay ou a Apple, entre outras, têm as suas instalações centrais nessa região da Califórnia. A Internet e revolução digital que hoje fazem parte das nossas vidas, impregnando os nossos hábitos sociais e económicos, tiveram fundamentalmente origem na mesma área onde decorre a distopia de A Peste Escarlate.

Jack London não antecipou que São Francisco, cidade onde nasceu e viveu, nem o vizinho Silicon Valley seriam, em finais do século XX e inícios do século XXI, o maior centro tecnológico impulsionador da globalização que vivemos. Nem que a pandemia teria origem na China e rapidamente se espalharia a partir daí dada a sua centralidade na globalização de hoje. Mas antecipou como a civilização humana, mesmo a mais elevada, tecnológica e sofisticada, é frágil: “o trabalho do homem é efémero” e pode esvair-se “como a espuma do mar…”. Para além da ameaça à vida humana, que pode ser mortal, o novo vírus SARS-CoV-2 (coronavírus), que originou a pandemia da covid-19, está a matar uma outra criação humana: a economia globalizada em que vivemos.

4. Em Fevereiro, no Fórum Económico Mundial um artigo assinado por John Letzing, enunciava cruamente o problema: “A covid-19 tem implicações potencialmente graves para a economia global”. As consequências da sua difusão estão a afectar “sectores económicos em todo o mundo, desde os produtores agrícolas nas Américas até aos fabricantes de painéis solares na Índia passando pelos trabalhadores de turismo na Ásia.” Notava-se no mesmo texto que, para além das preocupantes repercussões na saúde humana da covid-19 “o impacto económico do surto deste vírus tem também implicações potencialmente desastrosas”. Em inícios de Março tornou-se ainda mais evidente esse risco e sua real dimensão.

A covid-19 está a afectar, crescentemente, as cadeias de abastecimento das empresas e a atrasar, ou interromper, operações de fabrico de produtos um pouco por todo o mundo. As empresas e organizações mais vulneráveis começaram por ser aquelas que dependem largamente, ou de forma exclusiva, de fábricas na Ásia, em particular na China, mas também da Coreia do Sul e Japão. Entretanto, a pandemia alastrou para a Europa e EUA, dando-lhe uma outra amplitude ainda mais global. Está a levar a uma semi-paralisação das suas sociedades e economias, com particular gravidade em países como a Itália. As populações e sectores mais globalizados — do comércio internacional ao turismo, passando pelos estudantes Erasmus — vistos até agora como um way of life sofisticado e modelo a seguir, estão as primeiras vítimas de um vírus que ameaça destruir a globalização.

5. Fronteiras fechadas, aeroportos quase vazios, circulação de pessoas drasticamente limitada a nível internacional e no interior das cidades, cadeias de abastecimento   desarticuladas e lojas sem clientes ou encerradas. Estamos a viver uma desglobalização acelerada de consequências potencialmente desastrosas para a economia e o emprego. Não tenhamos ilusões. Não é uma questão de termos, ou não termos, simpatia pelas elites globalizadas, nacionais e internacionais, que gravitam à volta do Fórum Económico Mundial, as quais são os maiores beneficiários do sistema económico-social-político instituído nas últimas décadas. Mas uma desglobalização nestas circunstâncias — forçada pelo multiplicar de casos um vírus potencialmente mortal e no meio do pânico social —, nunca irá corrigir as muitas assimetrias e injustiças da globalização. Muito pelo contrário, provavelmente irá acentuá-las, afectando, ainda mais, as partes da população já mais frágeis e desfavorecidas.

Na realidade, a nível internacional, está já a desencadear uma espiral de competição ainda mais predatória do que a já existente, onde cada um tentará minimizar os danos económicos e sobreviver no mercado à custa dos restantes. A guerra de preços que se desencadeou nos mercados petrolíferos, numa triangulação que envolve a Arábia Saudita, a Rússia e indústria de shale oil dos EUA é um primeiro sinal inequívoco da engrenagem em marcha. Pode arruinar famílias, empresas e países inteiros que dependem crucialmente de receitas do petróleo. Mas se esta competição predatória na energia pode favorecer alguns, que a compram a preço mais baixo, chegará a outros sectores da actividade económica, despertando os piores instintos do ser humano.

Entre um vírus potencialmente fatal e medidas para o travar que podem deixar a economia seriamente danificada, ou mesmo em ruínas, há nos próximos tempos decisões extraordinariamente difíceis a tomar. Vale a pena ler, ou reler, Jack London e reflectir sobre a fragilidade das sociedades humanas que se podem esvair como “a espuma do mar”.

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