O perigo do anti-intelectualismo

Mesmo que nos devamos regozijar pelo facto de estarmos a crescer acima da média europeia não nos podemos resignar a ver acentuar-se, ano após ano, a nossa divergência em relação a Espanha.

1. No final da semana passada participei num curso de Verão promovido pela Fundação Yuste. Este curso decorreu no mosteiro com o mesmo nome, localizado na província espanhola da Estremadura, e no qual Carlos V passou os últimos meses da sua vida numa atitude de recolhimento interior. Agora acolhe a sede de uma Fundação dedicada à promoção da reflexão, do estudo e da discussão dos temas ligados à União Europeia e à América Latina. Num ambiente de profunda liberdade foi possível debater as questões que presentemente se colocam com maior acuidade nestes espaços geográficos e políticos. Impressionou-me o espírito de abertura mental prevalecente. Houve, porém, um momento de tensão, que terá passado quase despercebido à generalidade dos participantes, mas que me despertou para a reflexão sobre uma das mais inquietantes características do tempo que vivemos. 

A dada altura um interveniente numa mesa redonda lembrou-se de questionar o interesse daquilo que designou como uma excessiva propensão académica para a teorização da realidade, contrapondo a necessidade da obtenção de soluções imediatas e concretas para os problemas em análise. Imagino os aplausos que tal imprecação não teria deixado de suscitar numa reunião partidária ou num encontro de potenciais regeneradores das nossas democracias. Ali mereceu uma veemente resposta dada por uma socióloga argentina que enunciou com uma impressionante clareza os perigos do anti-intelectualismo, hoje tão disseminado. A desvalorização da reflexão crítica e a recusa da complexidade conduzem directamente ao surgimento de fenómenos políticos como aqueles que o sucesso de Trump ou de Bolsonaro configuram. Infelizmente esse discurso anti-intelectualista não se confina a esse reduto político e tem vindo a ser inesperadamente adoptado por representantes de quase todas as correntes de opinião. Contrariamente ao que se tornou vulgar dizer nem todos os movimentos etiquetados de populistas cultivam esta atitude. Será bom, a este propósito, não esquecer que há uma tradição populista assente numa elaboração teórica assinalável e que tem no pensamento de Ernesto Laclau a sua manifestação contemporânea mais sofisticada. 

O anti-intelectualismo como atitude ancorada na exaltação de um simplismo obreirista tem vindo a conquistar terreno de modo muito preocupante. Um dos seus efeitos consiste na supressão de um espaço público qualificado e aberto à troca de argumentos racionais. Na ausência desse espaço público proliferam as lógicas tribais no plano da adesão doutrinária e a mentalidade de alcateia no domínio da discussão social. Tudo isto tem tido tradução visível no empobrecimento da linguagem, na polarização emocional da retórica e na progressiva desvalorização do outro enquanto sujeito portador de um pensamento e de um discurso respeitáveis. Basta seguir uma tarde de debate parlamentar para perceber tudo isto de forma impressiva. Dispenso-me do penoso exercício da apresentação de casos concretos.
Só este inusitado avanço do anti-intelectualismo pode explicar o grau de facilitismo mental que está a atingir alguns sectores da chamada elite cultural portuguesa. Lêem-se e ouvem-se coisas que até há pouco tempo um certo pudor da inteligência teria condenado ao segredo de confabulações íntimas. Agora assiste-se a um exibicionismo da asneira como se isso constituísse prova da robustez das convicções. 

2. Na Assembleia da República decorreu ontem o debate sobre o estado da Nação. Como o fim da sessão legislativa coincide este ano com o término da legislatura este debate, em concreto, assumiu uma importância maior do que é habitual. Deter-me-ei exclusivamente num ponto específico que motivou acesa discussão e que é do maior relevo: a comparação do ritmo do crescimento económico português com o dos nossos parceiros europeus.

O Governo apresentou como um dos seus principais sucessos o facto de a nossa economia ter crescido nos últimos anos acima da média europeia, algo que já não sucedia há bastante tempo. O PSD, não podendo desmentir tal facto, optou por salientar a circunstância de estarmos a crescer a um ritmo francamente inferior ao dos países que nos são mais próximos do ponto de vista da produção de riqueza e do desenvolvimento.

Se quisermos levar a cabo uma discussão pré-eleitoral séria este terá de ser um dos temas centrais do debate público. Na verdade, o país continua aparentemente condenado a um crescimento económico medíocre que não abre perspectivas de melhoria dos salários, que são reconhecidamente baixos, e que põe em causa a sustentação financeira de alguns sectores fundamentais do Estado Providência. Depois de tantos investimentos na educação, nas infra-estruturas físicas, na promoção das novas tecnologias, que factores continuam a impedir uma maior expansão da economia portuguesa? Já não é possível alegar, como o fazia grande da direita, que os principais factores de bloqueio residiam na rigidez da legislação laboral ou na excessiva burocracia do Estado; também já não é aceitável afirmar, como durante muito tempo o fez uma certa esquerda, que o país se não preocupava devidamente com a qualificação dos seus recursos humanos. Esta questão, para a qual não se espera uma resposta unívoca, deve constituir-se como o grande tema de debate nacional nos próximos tempos. Mesmo que nos devamos regozijar pelo facto de estarmos a crescer acima da média europeia não nos podemos resignar a ver acentuar-se, ano após ano, a nossa divergência em relação a Espanha.

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