Cruzando fronteiras

Temas caros à literatura norte-americana, como a bravura na “última fronteira” e a luta entre o ser humano e a Natureza, puxaram A Grande Solidão para o cinema.

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Romance escorreito, ganha uma dimensão mais poderosa com as descrições da Natureza selvagem, de uma beleza fantasmagórica

1974. Ernt Allbright regressa a casa, da Guerra do Vietname. Foi feito prisioneiro e torturado. Viu morrer camaradas. Sofre de Stress Pós-Traumático e nem a mulher nem a filha — que ele ama e que o amam — são capazes de lhe aliviar os pesadelos ou de curar as feridas psicológicas e físicas que o marcaram para sempre. Irrequieto, inquieto e falido, não consegue manter empregos, fazer amigos ou procurar ajuda. Leni, a filha, uma jovem inteligente, que gosta de ler e de estudar, suporta, sem um queixume, as múltiplas deslocações, as contínuas mudanças de casa e de escola. Cora, a sua fiel e apaixonada mulher, não tem a possibilidade de fazer amizades ou de levar uma vida social normal. Mãe e filha são compreensivas. Sabem que Ernt voltou um homem diferente, marcado, deprimido e infeliz. Quando ele recebe a notícia de que herdou do seu antigo companheiro de armas, morto no Vietname, um terreno e uma casa no Alasca, convence a família a partir, com a promessa de um novo começo, num lugar que lhes pertence, longe do conturbado universo onde imperam guerras, desastres naturais, agitação política e crimes. Viverão do que a Natureza lhes oferece, da caça e da pesca. Cultivarão e prepararão os seus próprios alimentos, amar-se-ão e serão livres. O verdadeiro sonho hippie, essa corrente da contracultura que deslumbrou tanta gente a nos anos sessenta e setenta, está ao alcance de uma viagem de autocaravana. 

Quando finalmente chegam ao remoto lugar que é deles por direito, espera-os uma surpresa. A tão almejada herança inclui um terreno inóspito e um barracão sujo, decadente, coberto de caveiras de animais. Mas nem este cenário os desmoraliza. É Verão, os dias não acabam e o trabalho de recuperação da casa ocupa-os por completo. Os vizinhos aparecem para ajudar e, da boca de todos, chega-lhes o mesmo refrão insistente: “vem aí o Inverno, preparem-se  e guardem o máximo de provisões”. Os Albright trabalham duramente e Leni frequenta a minúscula escola, onde conhece Mathew, de quem se torna amiga. Mas o Verão acaba bruscamente e, sem surpresa, percebe-se que o lugar e os excêntricos que o habitam, essa “grande solidão” do título, não são o ambiente ideal para um homem como Ernt. Acirrado pelo álcool, pelo confinamento na pequena casa, pela paranoia alimentada por alguns amigos pouco recomendáveis, fanático de armas de fogo e fervoroso adepto de teorias da conspiração e da ameaça de perigos e apocalipses inimagináveis, obriga a filha a sair da cama a meio da noite para fazer exercícios militares ao ar livre, na escuridão gelada, e os ciúmes espoletam a violência contra Cora, que o desculpa sempre com dois argumentos : ele ama-a  e é um doente que merece compaixão e não condenação. Até que, um dia, como acontece nestas situações limite, o drama doméstico transforma-se em tragédia. O Alasca, última paragem para os deserdados, os brutos, os cansados, os sonhadores, os inadaptados, cobra um preço elevado. À mercê de todos os perigos, Leni crescerá, aprenderá a caçar e tornar-se-á mulher, testando, a cada instante, a sua resiliência e coragem perante os dramas que se abatem sobre ela.

A narrativa de A Grande Solidão assenta numa estrutura convencional — os acontecimentos são descritos cronologicamente,  1974, 1978 e 1986, com um final que fecha o círculo da acção. Romance escorreito, que mantém um certo suspense — estamos permanentemente à espera que Ernt, na sua imensa fragilidade psicológica, dê largas à violência reprimida —, ganha uma dimensão mais poderosa com as descrições da Natureza selvagem, indómita, de uma beleza fantasmagórica. A incrível dureza das condições de vida é compensada pela afabilidade de algumas personagens, como a Grande Marge, uma antiga advogada que, tal como outros vizinhos dos Albright, surge como alguém que é o pilar numa comunidade onde a entreajuda é essencial. As mulheres, sempre as mulheres, ferozes e corajosas são as principais guardiãs, os bastiões de força e resistência face às intempéries e aos abalos psicológicos e morais. Temas caros à literatura norte-americana como a bravura na “última fronteira”, a luta constante entre o ser humano e a Natureza, o espírito comunitário e, ainda, assuntos como a violência doméstica e a obsessão por armas — Ernt e o seu amigo Earl Maluco seriam certamente apoiantes de Trump, hoje em dia — fazem deste romance uma obra que merece ser transposta para o cinema — como , aliás, está a acontecer.

Kristin Hannah, autora de uma extensa obra de ficção, advogada de formação, escolheu, para este romance um cenário que conhece bem. O Alasca tem sido o destino da sua família, proprietária de um hotel dedicado à pesca, e essa familiaridade com a geografia, as pessoas, a atmosfera, as dificuldades e, também, a beleza da paisagem agreste confere a este romance uma verosimilhança poderosa e cativante.

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