Depois da Casa de Papel, o “Governo de papel”

O governo trata da saúde como trata das infra-estruturas. Está três anos sem fazer qualquer investimento e, depois, no primeiro mês do ano eleitoral, apresenta folhas de papel.

1. Nos últimos meses, a Lei de Bases da Saúde (LBS) tornou-se o alfa e ómega da política de saúde. Em especial, desde que a nova ministra tomou posse, a futura e eventual Lei de Bases tornou-se a grande, para não dizer a única, prioridade. Tudo o que o Governo tem para apresentar na área da saúde é, portanto, uma mera folha de papel. Tudo o que o Governo tem para mostrar é uma modesta proposta legislativa, com umas dezenas de artigos, cheios de proclamações pias e vagas, rasurada à última da hora pelo próprio punho da ministra, supostamente para agradar à sua esquerda.

O balanço de mais de três anos de desgoverno na saúde é uma proposta de lei de bases, divisiva e controversa, para fazer política partidária. Pior, para servir de arma de arremesso em campanha eleitoral. Isto diz muito sobre o Governo. E não diz menos sobre a ministra — hoje, é já claro, uma frágil ministra, proveniente da nomenclatura, que prova e comprova o enorme fiasco da remodelação de Outubro (a célebre “remodelação de Tancos”). Com efeito, olha-se para as ministras da saúde e da cultura, para o que decidem e para o “ruído” que criam com afirmações que fazem, e não se percebe o que ganhou o Governo com a troca. Olha-se para o ministro da economia, e depois de um arranque algo mais vigoroso, voltámos à inerte rotina do seu antecessor. E até na defesa, o ministro tem sido infeliz (como no caso recente de operações militares na Venezuela).

2. Voltando à saúde, comecemos pelo princípio. Se o governo queria reformar o sistema de saúde, se queria mesmo renovar o Serviço Nacional de Saúde, faz algum sentido que apresente o projecto de Lei de Bases da Saúde no final da legislatura? Qual é a lógica e o sentido de fazer aprovar esta lei de bases na fase final de um mandato governativo? Só se toma uma iniciativa destas no termo da legislatura, se nada se tem para apresentar, se nada se tem para mostrar. A escolha do momento para discutir e aprovar a Lei de Bases da Saúde é a prova manifesta e evidente de que o governo andou mal, mesmo muito mal, na área da saúde. Necessita, pois, como de pão para a boca, de agitar alguma bandeira, de exibir qualquer trunfo, de tirar um coelho da cartola.

À míngua de resultados, resolveu brindar-nos com uma proposta de lei. É por demais evidente que se o governo tivesse tido uma estratégia e tivesse estado disponível para afectar meios à reforma do sistema de saúde, teria promovido esta causa logo no início do seu mandato. Aliás, é também a falta de oportunidade que explica o consenso pedido pelo Presidente da República: uma lei de bases aprovada no fim da legislatura é uma lei para ser executada por um novo governo com uma nova fonte de legitimidade.

Ou bem que há um consenso alargado, ou bem que não tem sentido nem préstimo deixar uma lei para ser executada por uma maioria futura, cuja composição se desconhece (e vai conhecer-se dentro de escassos oito meses). Em resumo, o afã de apresentar e aprovar na recta final da legislatura os princípios da política de saúde e de estruturação dos serviços é ilógico e inoportuno. Ninguém termina um mandato, editando a lei que devia ter aprovado no seu início. Só o faz, claro está, se nada tiver para apresentar.

3. Ou, pior, muito pior: só o faz, se o balanço da sua política for altamente negativo, francamente mau, para não dizer, ruinoso. E esta é a razão das razões: o governo precisa de uma desculpa para o fracasso clamoroso da política de saúde. As urgências estão sobrelotadas e sem condições, há falta de médicos e de enfermeiros por toda a parte, as farmácias estão à míngua de medicamentos, as listas de espera de consultas e cirurgias aumentam todos os dias, a dívida dos hospitais sobe exponencialmente todos os meses, as administrações demitem-se em barda, dezenas de camas são extintas em diferentes serviços. Insisto no que já disse nestas páginas: nunca o estado dos serviços de saúde suscitou tanta apreensão, insegurança e até insatisfação em todos os que carecem das suas prestações. E o mesmo se diga dos profissionais e responsáveis de centros de saúde, de hospitais, de farmácia, que comungam da inquietação e da perplexidade. O governo, apesar do malabarismo dos números (a que, aliás, adiciona sistematicamente os dos agora diabolizados sectores social e privado), deixa o SNS em verdadeiro estado de coma. Diante de uma situação tão difícil, só lhe sobra o velho truque: sacar de mais uma folha de papel. A proposta de lei de bases é a folha de papel pela qual o governo desesperava.

4. É óbvio que nada impede aperfeiçoamentos na lei de bases ou a revisão de disposições da mesma. E nada impede legalmente que se elabore e aprove uma nova lei, que mude a filosofia respectiva de alto a baixo. O problema aqui não é legal. O problema aqui é tão-só o contraste entre o currículo do governo na área da saúde e este entusiasmo em fazer uma lei de enquadramento. Um governo que, por via dos cortes e das cativações, abandonou o SNS à sua sorte, quer agora fazer grandes proclamações de amor ao SNS por via legislativa. O problema da saúde em Portugal não é um problema legislativo. Os males de que agora padece o SNS não se resolvem com uma nova lei. Ter-se-iam resolvido, isso sim, com investimento, com gestão competente, com opções políticas diferentes, ao longo deste três anos de estertor.

5. Bem vistas as coisas, o governo trata da saúde como trata das infra-estruturas. Está três anos sem fazer qualquer investimento, está três anos a deixar degradar as estruturas existentes e, depois, no primeiro mês do ano eleitoral, apresenta folhas de papel. A proposta de lei de bases da saúde é, numa área bem mais sensível e seguramente ainda mais importante, o plano nacional de investimentos. Este governo não tem obra. Mas tem papel. “La casa de papel” era ficção. O “governo de papel” é realidade. Dura realidade. Pesada, muito pesada, realidade. Nunca o papel pesou tanto. Nunca pesou tanto a tantos.

SIM. António Passos Coelho. Como homem de cultura, médico e político, foi um exemplo. Um exemplo do que é e pode ser a cidadania; da cepa de que é feita a sociedade civil que tantos exaltam.  

NÃO. Nicolás Maduro. Quanto mais se sabe sobre a Venezuela, mais choca a miséria a que o ditador e os seus próceres conduziram um povo inteiro. A sua obstinação é uma má notícia para todos.

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