As vidas tombadas no Douro têm o “Lobo do Mar” a guardá-las

Quando o motor do barco avariou, Gastão Teixeira entristeceu. Mas na Ribeira do Porto, comerciantes juntaram-se para o ajudar a voltar ao rio. A missão do homem que só quer “ajudar os outros” já deu um livro. Na vida do “Lobo do Mar” cabe parte da história de uma cidade

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Gastão Teixeira, 65 anos, comprou o barco Lobo do Mar há 24 anos

Gastão não seria Gastão sem o rio. Quem o diz, mais palavra menos palavra, é o próprio. Olhos postos no Douro, a puxar fios à narrativa. “Quem me dá o rio dá-me tudo.” A história de amor é longa. Tão longa quanto a memória lhe permite recuar. Nascido a 4 de Abril de 1952, no número 10 da Rua dos Canastreiros, no Porto, Gastão Teixeira não se lembra de não ter o rio como prolongamento dos dias. A barriga poisada na pedra de uma lingueta e as pernas a mexer na água. O menino destemido a saltar da ponte para o Douro. A pesca de enguia e de robalo. Depois os salvamentos. “A minha felicidade é estar aqui”, conta. “Estar na Ribeira e ajudar os outros.”

Gastão Teixeira é o “Lobo do Mar”. O homem por quem todos chamam quando um corpo tomba no Douro. Vigilante do rio, zelador da Ribeira, amante do Porto. Nos 24 anos que leva desta “missão”, apenas num deles anotou quantos corpos, com ou sem vida, retirou da água. Foram 19 em 2013. Quantos terão sido em mais de duas décadas, não sabe. Nem perde tempo nessa equação se a intenção for reclamar louros. A dimensão do seu “vício”, garante, tem como protagonista apenas o desejo de amparar os outros.

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Bigode grisalho, pele morena de quem “trabalha” com o céu como tecto, boné do FC Porto posto. Gastão Teixeira já não tem casa na Ribeira, mas a Ribeira ainda é a casa dele. De segunda a sábado, de manhã ao pôr-do-sol, é por ali que está. Os domingos, entrega-os à família: duas filhas e cinco netos. Por estes dias, recuperou o sorriso perdido quando há meses o motor do seu barco azul e branco avariou. A solidariedade de amigos e comerciantes da Ribeira permitiu-lhe compor a máquina e regressar ao “labor”. “Estive quatro meses sem barco.” Gastão Teixeira, 65 anos, recorda o momento e as palavras envolvem-se em emoção, como se revivesse a angústia de estar em terra sabendo que se alguém caísse ou se lançasse ao Douro ele não poderia ajudar.

O motor que agora instalou na embarcação de nome Lobo do Mar – um baptismo já inscrito na madeira quando o comprou e que Gastão adoptou – “não tem a mesma força”. E isso ainda lhe rouba horas de sono, quando se põe a matutar em cenários mais trágicos. “Se alguém precisa de ajuda, não chego com tanta rapidez.”

Se o rio foi sempre segunda pele para Gastão Teixeira, os salvamentos cedo se revelaram uma quase obsessão. Era menino de escola quando a irmã Irene lhe veio dar a nova: o pai tinha comprado um barco. “Desde pequenino que só via o rio por isso fiquei radiante.” Mas o direito de comandar o barco seria ganho a pulso. Um dia, estava com o pai na embarcação, ele mandou-o mergulhar. “Agora nada até à outra margem”, disse-lhe. Ele, menino com oito ou nove anos, começou a fazê-lo. Mas a meio do caminho as forças já falhavam. Pediu ajuda. O pai, ao lado, respondeu contundente: “Vais para terra ou vais para o fundo.” Ele seguiu. E ao chegar a terras de Gaia teve de dar a volta e nadar até ao Porto de novo. A prova superada deu-lhe novos direitos: “A partir daí pegava no barco e ia às enguias para ganhar umas coroas”, lembra sorridente. Nos sonhos, crescia já a ideia de ter um barco só dele.

Na casa humilde da Rua dos Canastreiros eram 18. Pai sapateiro, mãe doméstica, 16 filhos. “Vivíamos com dificuldade mas não posso dizer que passámos fome”, diz. No prédio, arrendavam-se quartos a trabalhadores e a mãe e a avó eram as “sub-alugas”, emprego informal que lhes valia viver por ali sem pagar renda. Naqueles anos, apanhava o eléctrico 15 até às Antas e se acontecia não ter o pai por companhia escondia-se entre as pernas dos adultos, rogando para o deixarem entrar no estádio com ele. A cidade e a Ribeira eram diferentes. As casas cheias, muitas barracas, vendedoras de melões e castanha, peixeiras. As crianças a jogar à bola. Muita miséria também. “Era uma Ribeira do povo, agora é do turismo”, avalia.

As palavras do “Lobo do Mar” não escavam uma crítica feroz. Ver gente de todo o mundo encantada com a sua Ribeira é para ele uma felicidade. O turismo, avalia, “veio dar um certo ser à cidade”. Mas quando se põe a pensar como poderia ser a Ribeira habitada, sem a miséria de outros tempos, não deixa de entristecer. “O Porto está bem. Só gostava que o povo da Ribeira ainda vivesse cá. São só hotéis e hostels. E as casas do Barredo sem gente…”

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Gastão começou a trabalhar numa fábrica de sapatos aos 13 anos. Antes disso, e durante as férias, juntava uns trocos extra a fazer biscates nas obras. Só interrompeu o emprego para cumprir serviço militar – em Espinho, em Lisboa e na Figueira da Foz. Quando regressou ao Porto, já o 25 de Abril tinha mudado o país, “a fábrica tinha dado falência”. À época, os bairros sociais multiplicavam-se na cidade e os pais foram da Ribeira para a torre um do Aleixo. Ele casou-se e mudou-se para o lado de lá do Douro. Na Cerâmica de Valadares, encontrou o emprego de uma vida: “Estive lá 31 anos, até me reformar com 48 de descontos.”

Nessa altura, Gastão Teixeira já tinha cumprido o sonho de menino. Comprara um barco, andava no rio de cana de pesca e iniciara a sua missão: “Aquilo de ajudar a tirar corpos já estava cá dentro.” A inspiração era também obra do Duque da Ribeira. Deocleciano Monteiro: barqueiro, figura emblemática da cidade, sabedor das manhas do rio como nenhum outro. “Era catraio e já o admirava”, diz o “Lobo do Mar”, recusando comparações. Chegou a apanhar corpos com ele, numa pedreira junto à praia da Madalena, em Gaia. “Ele a dar indicações, eu ao remo”, recorda. “Ninguém fazia aquilo como ele.”

O primeiro salvamento a sós fê-lo a 21 de Outubro. Gastão não decorou o ano, mas não esquece o dia, data de aniversário de um irmão. “Sei que tinha uns 18 ou 19 anos.” Um homem tombara na água. Um guarda-fiscal, aflito, assobiava no meio da ponte. E Gastão Teixeira não hesitou. Correu para a lingueta, apanhou um bote, improvisou um remo com uma tábua. “Atirei-me e salvei-o.” Recordar aquele dia ainda lhe dá calafrios. Era de noite, o pequeno barco metia água. “Alguém me empurrou para ajudar o homem, mas tive medo. Se tive…”

Salvar com vida quem se atira das pontes é um “milagre” que Gastão Teixeira só alcançou uma vez. Atento às movimentações, topou um barco atravessado debaixo da Ponte do Infante e estranhou. Segundos depois, ouvia o alerta para a Polícia Marítima e fazia-se ao rio. “Vou por ali acima e vejo um miúdo a tentar nadar.” Apanhou-o, perguntou-lhe o nome. “Xavier”, respondeu-lhe. Gastão levou-o para terra, o INEM transportou-o para o hospital.

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Dois anos depois, pela altura do Natal, um homem apareceu na Ribeira à procura dele. Era o pai do adolescente, de bolo-rei na mão, sem saber como lhe agradecer a vida do filho. Há semanas, na conta de Gastão, caíram 750 euros. E ele, convencido de um engano, foi ao banco. Negou ser o dono daquele dinheiro. Mas era. “A senhora disse-me que não foi engano, foi um depósito ao balcão”, conta emocionado: “Só sabiam que tinha sido feito por alguém chamado Xavier.”

O reconhecimento existe, mesmo que Gastão não o procure. Está nos cumprimentos sorridentes dos comerciantes e trabalhadores da Ribeira. No livro-biografia escrito recentemente por Francisco Silva Pereira, um polícia reformado testemunha das proezas do “Lobo do Mar” nos últimos anos. Na medalha de ouro da cidade oferecida pela Câmara do Porto em 2016. No colete dado pela protecção civil, qual confirmação de Gastão como homem da casa. “Não peço nada a ninguém”, encolhe os ombros quando se enumeram as recompensas. A morte está à distância de uma queda na vida de Gastão, não impressionável com sangue, sabedor do fim como algo natural. Mas é pela vida que ele continua. Mágoa terá apenas uma: “Saber que quando deixar de ter forças isto deverá acabar”, pronuncia baixinho. Para já, o “radar” do “Lobo do Mar” segue no Douro. “É esta a minha missão.”

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