Os yuppies estão a salvar a democracia romena

A uma semana da sua primeira presidência europeia, a Roménia diz que está “tudo pronto”. Mas há dúvidas. O país está a ser governado por decretos de emergência e todos parecem estar contra a coligação socialista e conservadora que está no poder: do chefe de Estado e jovens das empresas tecnológicas aos velhos nostálgicos do comunismo.

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DAN BALANESCU/EPA

— Quer dizer hippies?

— Não, yuppies — insiste a professora — Estou a falar dos jovens profissionais e académicos que trabalham nas empresas internacionais, impecavelmente vestidos, bons salários, carro do último modelo. Eles têm estado em peso na rua a defender a democracia.

Mariuca Stanciu, professora de Estudos Judaicos na Universidade de Bucareste e directora do departamento informático da Biblioteca Académica, tenta explicar quem são as pessoas que há meses fazem manifestações na Roménia a defender a democracia e a pedir o fim da corrupção.

Em Janeiro de 2017, mal tomou posse, o governo do Partido Social-Democrata (PSD) — herdeiro do regime comunista —, em coligação com a ALDE (Aliança dos Liberais Democratas, conservadores), anunciou que ia fazer uma amnistia, perdoar alguns crimes e emendar leis sobre abuso de poder no Código de Processo Penal (CPP). Quase de imediato, os yuppies saíram para a rua. A 31 de Janeiro, ao fim do dia, o governo aprovou um decreto a alterar o CPP. Horas depois, havia 25 mil pessoas em frente à sede do governo, na Praça da Vitória, em Bucareste. Estavam sete graus negativos, mas a multidão não arredou pé. No dia seguinte, seriam já 300 mil. Até Março, houve manifestações em várias cidades romenas todos os dias. O padrão repetiu-se em 2018. O governo foi mudando a legislação do sistema judiciário e os cidadãos foram protestando. Aos olhos dos manifestantes, as alterações na área da justiça têm tido um único objectivo: travar os inquéritos, condenações e prisões da classe política.

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A nova geração de yuppies tem uma mentalidade muito europeia: são pessoas que estudaram a sério e olham para a actual classe política como o inimigo”, diz Mariuca Stanciu. Protesto em Bucareste, em Janeiro de 2017 Mihai Petre/CC BY-SA 4.0

Desde que a Roménia entrou na União Europeia (2007) e iniciou a reforma do sistema judiciário — aumentando a independência da investigação e a separação entre justiça e política — houve dezenas de políticos condenados. Um deles é o próprio presidente do PSD, Liviu Dragnea, condenado duas vezes: em Maio de 2015 (dois anos de pena suspensa num caso de fraude eleitoral) e em Junho de 2018 (três anos e meio de prisão por incitamento ao abuso de poder). E há um ano o Directorado Nacional Anticorrupção (DNA), a agência criada em 2002 para investigar crimes de corrupção geradores de prejuízos acima dos 200 mil euros, abriu uma terceira investigação contra o líder socialista, com base em informação do Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF).

É por causa das condenações na justiça que Liviu Dragnea não é o primeiro-ministro da Roménia — embora seja evidente que conduz o país nos bastidores. Ainda esta quinta-feira à noite foi Dragnea quem anunciou mais um despacho de emergência, desta vez para alterar o Código Fiscal. As propostas foram conhecidas há dias e incluem mudanças profundas. Segundo o chefe de Estado, os patrões, os sindicatos e os académicos, ninguém foi consultado. Todos disseram que as mudanças vão “criar um caos no país” e pediram uma “análise mais profunda”. Dragnea disse que quer as alterações ao Código Fiscal aprovadas antes do fim do ano.

As últimas avaliações da Comissão Europeia aos progressos da Roménia na reforma da justiça e na luta contra a corrupção — feitos no âmbito do Mecanismo de Cooperação e Verificação (MCV) accionado na adesão à UE — são duras. O relatório de Novembro de 2017 dizia que o ímpeto reformista dos últimos dez anos desapareceu e que a independência da justiça é “uma fonte contínua de preocupação” europeia. Um ano depois, o novo relatório diz que, apesar da vontade de Jean-Claude Juncker em acabar com o MCV — por definição, uma medida transitória — os “retrocessos” são tais, lê-se, que as recomendações anteriores sobre independência da justiça, reforma judicial e combate à corrupção já não chegam. Para dar o MCV como concluído será preciso mais.

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Viorica Dancila, a primeira-ministra do PSD, e Liviu Dragnea, presidente do partido ROBERT GHEMENT/EPA

Este último relatório foi publicado a 13 de Novembro, uma terça-feira. Na sexta-feira anterior, soube-se da demissão do ministro dos Assuntos Europeus, Victor Negrescu. O governo agiu como se nada fosse, apesar de faltarem, então, menos de dois meses para a presidência europeia romena começar e Negrescu ser o seu rosto oficial.

Em Outubro, a convite do governo de Bucareste, um grupo de jornalistas de vários países europeus, entre os quais o PÚBLICO, visitou três cidades romenas. A proposta era dar a conhecer os preparativos para a primeira presidência romena da UE. Apesar de as presidências terem hoje menos poder, o “semestre romeno” inclui um momento histórico — o “Brexit”, em Março — e as eleições para o Parlamento Europeu, em Maio. Há dois meses, ainda ministro, Negrescu disse, numa entrevista colectiva, que a presidência vai centrar-se nos cidadãos e tentar “aproximar as pessoas da agenda europeia” (uma das estratégias é colocar cartazes gigantes na rua a sinalizar as infra-estruturas e projectos financiados pela UE na Roménia). Mas Negrescu respondeu a todas as perguntas sobre o braço-de-ferro entre as instituições europeias e o governo de Bucareste como o “resultado dos estereótipos que há sobre a Roménia”. “As notícias positivas nem sempre vendem”, disse o então ministro.

Uma semana normal

Há meses que a Roménia está na corda bamba. O risco de o país estar a derrapar para um regime autoritário e uma “democracia iliberal” semelhante à Hungria e à Polónia é real. Mas o escrutínio é forte. Bastam uns dias na Roménia para perceber que os relatórios da Comissão de Veneza do Conselho da Europa e do GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção) são lidos tanto pela elite política e académica romena, como por cidadãos comuns. Os textos são duros, mas diplomáticos.

Na política interna, a tensão é mais explícita. Nos últimos dias, o país assistiu — quase hora a hora — a mais uma luta aberta entre presidência e executivo. No domingo, o jornal digital HotNews.ro noticiou que o PSD tinha pronto um decreto de emergência para amnistiar e perdoar condenados até dez anos de prisão e que o decreto seria adoptado até 15 de Janeiro. Nesse dia, Liviu Dragnea defendeu, em comunicado, que só uma amnistia pode “reparar os abusos e injustiças” dos últimos anos. “Na Roménia, falar de amnistia e perdão é como falar na bomba atómica. Eu não tenho medo de usar essas palavras.”

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Aos olhos dos manifestantes, as alterações na área da justiça têm tido um único objectivo: travar os inquéritos, condenações e prisões da classe política Inquam Photos/Reuters

No dia seguinte, segunda-feira, foi a vez do Presidente, Klaus Iohannis, emitir um comunicado para informar que pedira à primeira-ministra o envio da agenda do conselho de ministros na véspera de todas as reuniões. Iohannis invocou o artigo 87.º da Constituição e sublinhou que a lei fundamental lhe dá poder para exigir a agenda com 24 horas de antecedência e presidir às reuniões. A imprensa local escreveu que o Presidente — que se juntou a pelo menos uma manifestação em defesa do Estado de Direito — quer impedir a aprovação de decretos para amnistiar ou perdoar condenados a crimes relacionados com corrupção e abuso de poder. O PSD respondeu que a Constituição só lhe dá poderes sobre segurança nacional e ordem pública, pelo que a agenda a enviar só incluiria esses tópicos.

Na terça-feira, Iohannis respondeu que ia participar nas reuniões do governo “durante algum tempo”. Na quarta, criticou o decreto de emergência sobre questões fiscais, que não estava sequer agendado. E na quinta-feira, dia de conselho de ministros, chegou à sede do Governo às 15h, hora agendada para a reunião, com vários assessores, incluindo Leonard Orban, consultor para os Assuntos Europeus. À chegada, informou os jornalistas que quando um chefe de Estado participa em reuniões de conselho de ministros é ele quem preside, e que a sua presença não pode ser limitada no tempo. A seguir, Viorica Dancila, a primeira-ministra do PSD, respondeu que a reunião teria dois momentos e que o Presidente só poderia participar no primeiro (no qual seriam discutidas questões “cobertas” pela Constituição).

PLUS, um golpe de bastidores

Para a Roménia, foi uma semana normal. Até porque no sábado, antes de tudo isto, soube-se a história do parto do mais recente partido político. Chama-se Partido da Liberdade, União e Solidariedade (PLUS) e o líder é Dacian Ciolos, que em 2016 foi nomeado primeiro-ministro num governo de tecnocratas independentes em situação de emergência, após a queda do governo do PSD.

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Dacian Ciolos era um discreto ex-comissário europeu da Agricultura quando, após a crise política de 2015, foi convidado a formar um governa tecnocrata durante um ano Dean Mouhtaropoulos/Getty Images

Não é estranho Ciolos ter criado um partido. Estranho é o que Ciolos denunciou sobre as dificuldades que teve para o fazer. Durante um ano, o antigo primeiro-ministro esteve enredado em processos em tribunal sem conseguir registar o seu Movimento Roménia Juntos. Perante os obstáculos, em Setembro decidiu pensar numa alternativa. Solução? Iniciou um novo processo para registar outro partido político, desta vez não em seu nome, mas no de “pessoas anónimas”.

A manobra resultou: em dois meses, o PLUS tornou-se oficial. Só quando recebeu o certificado revelou ser ele o líder. Formalmente, os fundadores do são os advogados Adrian Alexandru Iordache, Iulia Iordache e Raluca Florina Danes, “pessoas anónimas que partilham dos mesmos valores e princípios, que nos querem ajudar, e que preencheram os papéis” do Registo dos Partidos Políticos da Roménia, disse Ciolos numa conferência de imprensa citada pelo site Romania Insider.

Dacian Ciolos, de 49 anos, era um discreto ex-comissário europeu da Agricultura, nomeado por José Manuel Durão Barroso, quando, após a crise política de 2015, foi convidado a formar um governo tecnocrata durante um ano. Os seus ministros aceitarem o cargo com a condição de não terem de se candidatar às eleições seguintes. Assim foi e o PSD voltou a ganhar as legislativas. Em Janeiro de 2017 regressou ao poder.

“Ninguém acreditou que seria possível destruir tanto e tão depressa”, diz Vasile Popovici, que foi deputado e embaixador e hoje dá aulas de História na Faculdade de Letras de Timisoara — e que em 1989 foi um dos líderes da revolução de Timisoara, onde se iniciou o movimento popular que levou à queda da ditadura comunista de Nicolai Ceausescu. Estamos na livraria Am Dom, ao pé da catedral de Timisoara, Capital Europeia da Cultura em 2021. “As pessoas acreditaram que o Presidente iria conseguir manter as coisas sob controlo. O Presidente é um democrata, mas a decepção é grande. Tudo o que a Roménia fez nos últimos dez anos foi destruído em meses”, diz o professor, que foi embaixador em Portugal e em Marrocos. “Tínhamos esperança de que a Roménia se tornasse um modelo para a Europa. E fomos um modelo! Foi com a legislação exemplar que tínhamos que Liviu Dragnea foi condenado duas vezes e vários ministros e líderes locais foram condenados.” A Roménia tem 41 distritos e, desses, os presidentes de pelo menos 25 foram condenados nos últimos anos. As notícias sobre o famoso “painel negro” de juízes do Supremo Tribunal são frequentes. Esta sexta-feira, mais um político viu a sua condenação confirmada: o ex-senador Olosz Gergely, do UDMR (da a minoria húngara), e ex-presidente da Autoridade Reguladora da Energia, vai ter de cumprir a pena de três anos de prisão à qual foi condenado num caso de corrupção. “É difícil acreditar neste país”, diz Popovici. “É um recomeçar contínuo.”

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Inquam Photos/Octav Ganea

O primeiro teste ao novo recomeço será já em Maio, nas eleições europeias. Nestes dois anos de contestação, será a primeira vez que os romenos poderão expressar a sua opinião através do voto. No fim de 2019 há eleições presidenciais e no fim de 2020 há legislativas. A pressão para a mudança é grande nas ruas e a última sondagem, feita este mês, dá apenas 25% das intenções de voto no PSD. Nas últimas legislativas, com uma abstenção recorde, o partido teve 46% dos votos. Mas esta semana foi chumbada no Parlamento mais uma moção de censura contra a coligação governamental.

Occupy na Praça da Vitória

De regresso a Bucareste, a 500 quilómetros de distância, a professora Mariuca Stanci explica que “a nova geração de yuppies tem uma mentalidade muito europeia: são pessoas que estudaram a sério e olham para a actual classe política como o inimigo. Querem gozar as liberdades da democracia e este governo quer tirar-lhe algumas dessas liberdades”.

Muitos destes yuppies trabalham nas principais avenidas de Bucareste, Timisoara e Cluj, onde os néons nos edifícios mais altos não enganam: a Microsoft e a Deloitte dão nas vistas. Mas há, mais discretos, logótipos das marcas internacionais que escolheram a Roménia para os seus centros de serviços e apoio regional e global, como a Deutsche Telekom (Alemanha), a Kellogg (EUA) ou a Ericsson (Suécia). O mesmo com os centros tecnológicos: o centro global de IT do Deutsche Bank é na Roménia. O Centro de Contabilidade para a Europa dos serviços da Deutsche Bahn, os caminhos-de-ferro alemães, é em Bucareste. A Vodafone tem centros de IT e serviços de apoio aos clientes na Roménia. A King, que produz jogos para telemóveis, alugou há três anos uma área de 1700 metros quadrados no centro da capital. A CGS, uma empresa americana de soluções de outsourcing, já tem quatro escritórios no país. A empresa de inquéritos GfK abriu um escritório em Iasi há 26 anos e em 2015 anunciou que ia expandir e tornar a sua operação na Roménia num hub europeu. E só em Cluj, a terceira maior cidade da Roménia (325 mil habitantes), há 1350 empresas tecnológicas e mais de 20 mil programadores e engenheiros.

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Mariuca Stanciu, professora de Estudos Judaicos na Universidade de Bucareste e directora do departamento informático da Biblioteca Académica DR

“Durante meses, havia manifestações quase todos os fins-de-semana e pela noite dentro. Foi nessa altura que surgiu um pequeno ‘occupy’ na Praça da Vitória”, diz a professora Stanciu. A flexibilidade das grandes empresas internacionais foi decisiva. “As pessoas continuaram a trabalhar, mas foram autorizadas a protestar na rua e se estivessem nas manifestações até às 2h da manhã e, no dia seguinte, chegassem tarde ao trabalho, as chefias mostravam tolerância.”

Já não há nem 50 mil, nem 500 mil pessoas nas ruas, como aconteceu no Inverno de 2017 e no Verão de 2018. Mas o mini-occupy-versão-Bucareste não desapareceu. Na Praça da Vitória há sempre alguém, nem que seja uma única pessoa. Os cidadãos organizaram-se como estafetas: uns ficam das 15h às 18h, a seguir vem outro grupo até às 20h, que depois é substituído por outro que fica até às 22h. “A ideia é haver sempre alguém com uma bandeira na praça”, diz Stanciu, que cresceu numa família comunista e diz sentir ainda, após três décadas de democracia, hábitos que ficaram da ditadura de Ceausescu. “A maioria das pessoas com mais de 50 anos ainda fala segundo códigos: quando não se conhecem, usam um tom neutral e expressões positivas para descrever a realidade, como se tudo estivesse bem. Só quando se conhecem melhor é que se abrem e dizem o que realmente pensam. Os jovens são muito diferentes.” Estamos a caminhar há meia hora quando chegamos à grande Praça da Vitória.

Chama-se “praça” mas hoje é uma intercepção de carros com 35 faixas de rodagem distribuídas por duas avenidas. À esquerda, há um parque de estacionamento com 150 lugares e duas torres - em Bucareste há pelo menos dez edifícios com mais de 70 andares e três com mais de 100. À direita, está o palácio do governo. Há planos para colocar a estátua de um combatente anticomunista no centro, mas neste momento ainda só há separadores de trânsito. Dizer que a Praça da Vitória é antipática para peões é dizer pouco. “Está a ver ali ao fundo?”, aponta a professora Stanciu. “São eles, os manifestantes. Há sempre ali alguém a protestar. É assim há meses.” Uns são yuppies, outros não, mas são quase sempre jovens. “Nas eleições de 2016, muitos jovens não votaram. Depois, com o que viram acontecer, vieram logo para a rua.”

Os romenos que trabalham nas empresas de IT “envolveram-se de várias formas na defesa da democracia — não apenas participando nos protestos”, diz Liliana Popescu, professora de Ciências Políticas na Universidade Nacional de Estudos de Política e Administração (SNSPA) de Bucareste e vice-reitora para as Relações Internacionais. “Também foram importantes a ligar as pessoas. Um exemplo: no protesto da ‘Diáspora em Casa’, de 10 de Agosto, quando a polícia interveio brutalmente, os funcionários das empresas tecnológicas criaram imediatamente uma plataforma para que as pessoas feridas e espancadas pela polícia pudessem apresentar queixa, descrevendo o que tinha acontecido”, conta. Além disso, “algumas das ONG mais activas na Roménia são lideradas por pessoal das empresas tecnológicas ou têm como membros especialistas em IT.”

A força da diáspora

Mas os yuppies não estão sozinhos, concordam várias pessoas ouvidas pelo PÚBLICO nos últimos três meses. O outro grande grupo de romenos que está na rua a defender o Estado de Direito são os pais, tios e avós dos jovens na diáspora. “São pessoas mais velhas, com 60 e 70 anos, muitas delas com pouca educação e mais acomodadas. Algumas até votaram no PSD e têm nostalgia pelo passado comunista. São pessoas que dizem que antes não havia desemprego e que quem ia trabalhar para uma fábrica recebia uma casa do Estado”, diz Stanciu. “São familiares dos jovens romenos que emigraram para outros países europeus e que, por causa disso, têm vindo a ser influenciados com valores democráticos.” Algures neste remix dos influenciados “de fora” (pais da diáspora) e os influenciados “de dentro” (yuppies) está uma explicação possível para a força da cidadania romena.

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O Presidente Klaus Iohannis, no meio dos manifestantes, tem assumido um papel de forte contestação ao governo Reuters

“Mas é mais complexo”, disse Dacian Ciolos ao PÚBLICO, durante a breve visita de Outubro a Bucareste. “Nas ruas há empresários, estudantes, familiares da diáspora, jovens das grandes empresas internacionais.” E “há professores, académicos, médicos, operários, estudantes, pensionistas”, diz a vice-reitora Liliana Popescu, numa entrevista por email. “E não podemos esquecer as pessoas formadas em Direito — advogados e especialistas em direitos humanos — que escrevem, publicam e divulgam as suas opiniões sobre o que está a acontecer e sobre os truques legais que este governo está a fazer para maximizar o seu domínio do poder político. Há uma grande diversidade de pessoas nos protestos.”

E não é só em Bucareste, em Timisoara, em Cluj e noutras cidades grandes. “Quando começou a pressão sobre a justiça, houve protestos em todo o país, até em cidades médias e pequenas”, diz Ciolos. “Em cidades com uma população de 50 mil, houve protestos com mil pessoas na rua — isso é novo na Roménia.” O antigo primeiro-ministro faz uma lista rápida: houve manifestações em Sebes (24 mil pessoas), em Zalau (56 mil), em Roman (50 mil), em Lugoj (44 mil). “E até nas cidades do sul, que são mais pró-PSD.” Em Agosto, mas antes também. “Em Janeiro e Fevereiro de 2017, quando o governo tentou fazer alterações ao Código de Processo Penal através de um decreto de emergência, a pressão do país foi enorme. Houve 600 mil pessoas nas ruas, muitas das quais nestas pequenas cidades. E há cada vez mais. Cada vez mais pessoas percebem que os actuais líderes políticos romenos fazem mudanças nas leis apenas para defender os seus interesses pessoais. Até as pessoas que votaram neles já perceberam isso.”

Três a quatro milhões estão fora

Os problemas começaram antes de 2016. Em Bucareste e em Timisoara, qualquer adulto com quem se conversa uns minutos fala de duas coisas: as noites geladas dos anos 1980 (quando Ceausescu pagou a dívida nacional e levou a Roménia à bancarrota) e os milhões que emigraram a seguir à revolução de 1989. Desde 1990, terão saído três a quatro milhões de pessoas - um quinto da população em idade activa. E por isso a pergunta é feita várias vezes: como é que se constrói um país democrático com tantas pessoas fora, muitas delas os jovens mais qualificados? Só no Reino Unido, haverá 15 mil médicos romenos.

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Stoyan Nenov/Reuters

Dacian Ciolos, de novo, diz que não é tão simples. “A diáspora romena não tem só jovens com educação superior. O perfil da diáspora é igual ao perfil da sociedade: há pessoas com formação superior, pessoas com menos educação, há operários, agricultores, pessoas na construção civil e nos serviços, mas também em funções de topo. E isto é muito importante para o nosso futuro. Porque sendo o perfil da sociedade romena, a diáspora está em contacto com os valores europeus, pratica os valores europeus no dia-a-dia, pratica as regras da transparência a nível das administrações públicas dos países onde trabalha, pratica a iniciativa privada, percebe o que significa uma justiça que funciona, o que significa ser profissional e ter competências. Coisas apenas teóricas para muitos romenos que vivem na Roménia.”

Antes de conseguir registar um partido político, Ciolos preparou um programa de governo. “Em todas as reformas que propomos, atribuímos um papel-chave à diáspora. Queremos fazer as reformas com a diáspora. Quando era comissário europeu, tive a surpresa positiva de, ao viajar pela Europa, ver uma diáspora muito comprometida com o país e muito ligada à Roménia. São pessoas que passam dois a três meses por ano aqui, onde constroem casas e abrem negócios para a família.”

Como é que a diáspora pode ajudar? “Fazendo a ligação. Temos um plano para atrair estas pessoas e convencê-las a regressar. Como agora há salários mais altos no sector privado, uma parte importante dos romenos que está a trabalhar por 1000 euros por mês em Espanha ou em Itália, está disposta a regressar para a Roménia por 600 euros por mês para estar com a família, porque o custo de vida na Roménia é mais baixo. Além dos operários e dos empresários, há uma terceira categoria: os romenos que não regressam definitivamente, mas voltam para fazer ligações com romenos e empresas romenas aqui.”

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A Roménia tem 41 distritos. Desses, os presidentes de pelo menos 25 foram condenados nos últimos anos, diz Vasile Popovici Stoyan Nenov/Reuters

A diáspora é tão importante quanto os que estão na rua a protestar? “É ainda mais importante. Um jovem que trabalha numa grande empresa na cidade pode fazer coisas nas zonas urbanas, mas não nas zonas rurais. Precisamos de uma mudança profunda e transversal. Não só na Roménia. Precisamos de mudança não apenas em ilhas. Precisamos de mobilização da sociedade civil, de reconstruir cidadania em toda a Europa. As pessoas da diáspora que deixaram as suas zonas rurais na Roménia há dez, cinco ou dois anos, quando regressarem vão voltar com influências democráticas que serão mais fortes do que qualquer apoio social ou propaganda. Por isso esta ligação aos que estão fora é tão importante.”

É provável que isso contribua para a relação forte que o país tem em relação às instituições europeias. Numa sondagem recente, 91% dos romenos disse que é contra a saída da Roménia da UE.

“Há uma luta de guerrilha na Roménia”

Esta é uma diferença em relação à Polónia e à Hungria, que já ultrapassaram o risco vermelho dos critérios europeus, notam vários analistas. Mas a principal é a força da sociedade civil. “Até agora, conseguimos pôr barreiras e impedir o aparecimento de um governante autoritário”, diz a professora Liliana Popescu. “Talvez porque temos uma forte memória do regime totalitário de Ceausescu e não queremos repetir a experiência. Damos muita importância aos valores democráticos. Pagámos muito para nos tornarmos um Estado-membro da União Europeia e preocupamo-nos mais com a adesão.”

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Liviu Dragnea foi condenado duas vezes: em Maio de 2015 (dois anos de pena suspensa num caso de fraude eleitoral) e em Junho de 2018 (três anos e meio de prisão por incitamento ao abuso de poder) Stoyan Nenov/Reuters

Há quem fale do “iliberalismo falso e oportunista” romeno, por oposição ao genuíno nacionalismo populista que está a renascer na Hungria e Polónia. Será uma forma de sublinhar a esperança de que o momento actual seja transitório e esteja prestes a desaparecer.

Ninguém quer ver aplicado ao país o artigo 7.º do Tratado da UE, activado quando há “um risco manifesto de violação grave dos valores” da União. Foi o que aconteceu na Hungria. “Há uma diferença importante em relação à Hungria ou à Polónia: a sociedade romena está muito activa”, insiste Ciolos. A democracia romena está em risco, mas as pessoas acordaram. “A democracia está em risco em muitos países europeus”, diz a professora Popescu. “Mas em comparação com a Hungria e a Polónia — os Estados-membros do Leste impertinente —, a Roménia ainda está em boa forma. A situação não é má ao ponto de activar o artigo 7.º, mas a UE deve ser dura e lembrar ao governo romeno os compromissos feitos no passado. Entrar na UE significa responsabilidades, não apenas direitos e benefícios.”

Esperam-se manifestações nos próximos dias. Entre activistas, políticos e analistas, há quem acredite que o governo ainda pode cair antes de 1 de Janeiro, dia em que Bucareste inicia a sua presidência europeia. Não espanta. “Há uma luta de guerrilha na Roménia para preservar o espírito e as instituições democráticas”, diz Popescu. “A coligação no poder está a tentar erodir as instituições democráticas, mas a resistência é dura.”

O PÚBLICO viajou a convite do governo da Roménia

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