A luta de Jade Freire é tirar as beatas do chão e expô-las como resíduo tóxico

A estudante brasileira promoveu durante esta semana uma acção de recolha de beatas na FCSH, em Lisboa. A sua luta, presente também na tese de mestrado, passa por fechar o ciclo da beata. “O importante é reconhecê-la como resíduo tóxico."

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Jade Freire é aluna do mestrado de Ecologia Humana, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da unversidade Nova de Lisboa Nuno Ferreira Monteiro
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Ao longo dos dois dias de acção foram recolhidas 1534 beatas do solo do campus. Nuno Ferreira Monteiro
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Em Outubro, uma outra acção recolheu 1805 beatas. Nuno Ferreira Monteiro
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Segundo a estudante, é necessário consciencializar. Nuno Ferreira Monteiro
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E por fim, terá que ser dado um destino ambiental correcto, que poderá passar pela compostagem das beatas. Nuno Ferreira Monteiro

“São 13h08, gente. Está valendo.” No pátio da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, Jade Freire, de 43 anos, comanda voluntários e membros da acção de recolha de beatas que é por si organizada, em parceria com a associação de estudantes e a Biataki, uma rede de sensibilização ambiental que também comercializa várias soluções de cinzeiros. A acção, que se insere na Semana da Prevenção de Resíduos, decorreu durante dois dias desta semana, período durante o qual foram recolhidas 1534 beatas. Já em Outubro, num dia, tinham sido apanhadas 1805. 

As mesas distribuídas pelo espaço exterior do campus, na Avenida de Berna, estão repletas. Alguns alunos terminam os cigarros, apagando-os no parco número de cinzeiros que povoam as mesas. Outros atiram-nos para o chão, sem pudor.

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Em Portugal, são produzidos dez mil milhões de cigarros por ano

Jade, uma paulista que trocou os arredores de São Paulo por Lisboa, é ali estudante do mestrado de Ecologia Humana. Foi há dois anos que decidiu, finalmente, estudar o que sempre a apaixonou. Afinal de contas, a formação em Gestão não lhe despontava o mesmo sentimento que agora a invade quando imerge nas questões ambientais que considera prementes.

Quando chegou a Lisboa, pensou: “Bom, beata tem em todo o lado.” Mas cedo percebeu que havia algo de errado com a quantidade de restos de cigarros que encontrava ensardinhados na calçada. “Parecia que as beatas iam atacar as minhas pernas”, afirma, sentada na esplanada da faculdade. Após duas semanas de aulas, já sabia o que iria estudar até ao final do curso.

O foco da sua tese de mestrado incide sobre a consciencialização do poder público no inadequado descarte das beatas. É que em Portugal, a cada dez minutos, diz, são atiradas para o chão cerca de sete mil beatas; São números impressionantes, tendo em conta as dimensões do nosso país. “Mas e se lhe disser que, em Portugal, são fabricados dez mil milhões de cigarros por ano?”, questiona a estudante.

Depois de se reunir com alguns partidos e órgãos de poder local, sentiu que um primeiro pequeno passo estava dado. Numa conversa com um membro de uma junta de freguesia, ao dar a conhecer estes números, “um vogal até se enterrou na cadeira”. Mas ainda há muito a fazer, observa.

“Se jogar uma garrafa no chão vai ser olhado com cara feia, mas com a beata não”, aponta. Em Portugal, o acto de atirar a sobra do cigarro para o chão é encarado como algo natural, quase cultural. E isso tem fortes custos para a cidade, explica Jade: “A questão da beata no chão provoca custos financeiros, ambientais e sociais.” Uma das implicações é a contaminação das águas da chuva.

Uma beata pode poluir dois litros de água

A brasileira reparou que a cidade não tem infra-estruturas adequadas para receber e processar esse desperdício. “[A beata] é tratada como um outro lixo qualquer e as pessoas não estão consciencializadas de que é um resíduo tóxico.” Desde o seu fabrico, causa imensos danos. “Só no filtro, tem quatro mil substâncias químicas e não biodegradáveis, 300 delas são cancerígenas”, informa a investigadora.

Quando chove, inicia-se um ciclo. A água é contaminada pelas substâncias do cigarro e daí segue para os esgotos e, por sua vez, para o oceano. “Uma beata é o suficiente para poluir dois litros de água”, ainda que teoricamente consigam ser tratadas, “mas implica custos adicionais”.

Nos hospitais, questiona, retoricamente, “as seringas e as gazes vão para qualquer canto?”. A resposta não se faz esperar. “Não, 'né. Porque são tóxicas. Contaminantes. E as beatas também. Então não deveriam ser postas no mesmo sítio do lixo comum.” Em Portugal, este desperdício não é reconhecido como um resíduo tóxico. A Associação Portuguesa do Ambiente não a equipara a um componente tóxico, como as pilhas e tintas. “No aterro não estão lá lâmpadas nem nada”, sustenta Jade.

"No mundo, sete mil milhões de pessoas também disseram que era só um plastiquinho para o chão", satiriza Jade. Na FCSH, recolheu 3339 beatas, de "um espaço pequenino", repara a estudante. Esse número, sublinha, só revela a dimensão do problema. 

O primeiro passo é o da consciencialização. É preciso falar e é por isso que Jade leva a cabo esta acção (Não está sozinha: em Outubro, também estudantes da Universidade de Aveiro fizeram uma iniciativa semelhante). Do fundo do pátio, grita-lhe uma voz que “já são 966”, enquanto despeja as beatas no recipiente grande que as armazena. O outro passo necessário passa por adequar as infra-estruturas, mas, para isso, a autarquia teria de estar disponível. Por fim, encontrar um destino ambiental mais correcto.

Jade dá como exemplo a compostagem, “que agora está tão na moda”. Nesse processo, os microrganismos transformam a matéria numa substância semelhante ao solo da terra; o mesmo poderia acontecer com as beatas. E assim se fecharia o “ciclo”, diz a estudante. “O importante é reconhecer a beata como resíduo tóxico. A minha luta, digamos assim, é essa.” 

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