Dos EUA ao Brasil: a ameaça do tribalismo identitário à democracia

O actual ambiente de conflito e insegurança está a abrir a porta a um novo leviatã, que Thomas Hobbes imaginou como um governo central autoritário que pacificava e impunha ordem. Podemos estar a caminhar para algo parecido, pondo as sociedades democráticas em risco.

1. Uma das maiores transformações da modernidade ocidental foi superar as identidades tribais pré-modernas, tipicamente étnicas e/ou religiosas, criando identidades nacionais que se sobrepunham a estas. Hoje estamos a assistir, em várias partes do mundo, a um regresso de identidades tribais, ainda que com lógicas bastante diferentes ou sob roupagens pós-modernas. Em Jihad versus McWorld: How Globalism and Tribalism Are Reshaping the World (1995), Benjamin Barber configurou o mundo em devir como uma luta entre aquilo que designou como "McWorld" (a globalização dominada pelas grandes empresas multinacionais) e “jihad” (o fundamentalismo religioso e o nacionalismo radical), evidenciando preocupação quanto ao impacto negativo de ambas no futuro da democracia política. Recentemente foi Amy Chua, professora da Universidade de Yale, com Political Tribes: Group Instinct and the Fate of Nations / Tribos Políticas: O Instinto do Grupo e o Destino das Nações (Penguin Press, 2018), a relançar a preocupação com o tribalismo identitário. A autora mostra como, em certas circunstâncias, a lealdade aos grupos ultrapassa as ideologias políticas corroendo a democracia.

2. Nas sociedades que se mantêm ancoradas em lógicas pré-modernas, as identidades tribais impedem qualquer forma de democracia digna desse nome. Não existe uma cidadania partilhada entre a população. O Sul do Mediterrâneo e o Médio Oriente árabe-islâmico exemplificam essa realidade que persiste no século XXI: estão ainda profundamente impregnados de identidades tribais. A ideia de comunidade política raramente ultrapassa os limites do grupo, a não ser na lógica religiosa tradicional da umma, a comunidade dos crentes muçulmanos (similar à ideia da Cristandade medieval). As intervenções externas ocidentais (Afeganistão, Iraque, Líbia, etc.), supostamente para instaurar a democracia, estão destinadas ao fracasso. E revoltas populares autóctones, como as da “Primavera Árabe”, não levam a democracia a lado nenhum, a não ser na imaginação ocidental. Quando existe alguma liberdade política para votar, a população vota normalmente nos partidos da sua tribo, quer dizer no seu grupo étnico ou religioso. Assim, a “democracia” não passa de uma cosmética caricatural. O Iraque pós-Saddam Hussein mostra isso: a população xiita vota esmagadoramente nos partidos xiitas, a sunita nos partidos sunitas e os curdos nos partidos curdos. O Líbano é outro exemplo clássico de tribalismo identitário e político. O presidente da república é um cristão maronita, o primeiro-ministro um muçulmano sunita e o presidente do parlamento é um muçulmano xiita. Os corpos eleitorais são separados. O tribalismo pré-moderno torna a democracia impossível nas partes do mundo que não o superaram. Mas hoje há um novo tribalismo: o tribalismo identitário pós-moderno. Pode causar graves danos à democracia.

3. No Ocidente e no mundo que lhe é próximo histórica e culturalmente, tem-se verificado um crescente exacerbar da identidade e da diferença relacionadas com o género humano, a orientação sexual, o grupo étnico, ou o grupo religioso. Esse exacerbar da identidade ocorre ligado a um ideário que influencia políticas públicas assentes nos interesses e perspectivas de certos grupos. A sua justificação é o de que os indivíduos pertencentes a esses grupos são, em virtude da sua identidade, vulneráveis a formas de discriminação e opressão que não ocorrem no grupo maioritário. Mas essa forma de combate à discriminação criou uma engrenagem fragmentadora da sociedade. Cada grupo e os seus simpatizantes tendem a actuar numa lógica identitária, sobrepondo-a ao sentimento comum de pertença a uma mesma comunidade política alargada e a uma mesma humanidade. As lutas políticas actuais mostram isso. Pouco interessa que a escolha para um cargo de relevo seja a melhor para o bem comum de todos os cidadãos numa lógica abrangente e humanista: o que interessa é que seja da tribo, que seja um, ou uma, dos nossos(as). Uma mulher foi eleita para um cargo político ou directivo importante (uma vitória para a causa das a mulheres); um homossexual ou uma lésbica chegaram a uma posição política de relevo, ou a um cargo directivo importante (uma vitória para a comunidade LGBT); um muçulmano foi eleito para um cargo político nacional ou local (uma vitória para a comunidade muçulmana); um branco e protestante é eleito juiz no supremo tribunal (uma vitória para os WASP). Como chegamos a esta forma de fazer política onde o grupo (a tribo) e as suas causas passaram a ser uma linha maior de divisão da sociedade?

4. Antes de ascenderem ao mainstream político as políticas de identidade foram impulsionadas, a partir das margens, nos anos 1980/1990, pela esquerda radical multicultural, influente nas universidades e nos media. Paradoxalmente, agora estão a ser mimetizadas e replicadas pela direita radical (alt-right) — que sempre se insurgiu contra elas —, com grande sucesso eleitoral. No caso dos EUA, como explica Sheri Berman da Universidade de Columbia, “no passado, os partidos Republicano e Democrata atraíam simpatizantes com diferentes identidades raciais, religiosas, ideológicas e regionais, mas gradualmente os republicanos tornaram-se o partido dos eleitores brancos, evangélicos, conservadores e rurais, enquanto os democratas se associaram a não-brancos, não-evangélicos, liberais e urbanos”. Mas ao contrário do que acontecia no passado, um dos efeitos mais perversos das políticas de identidade é que hoje, quando um partido perde eleições isso representa também “um golpe para identidade racial, religiosa, regional e ideológica” dos seus apoiantes (ver “Why identity politics benefits the right more than the left” in Guardian, 14/07/2018). Este conflito profundo de identidades e de valores e as tensões que gera na sociedade, fazem lembrar uma reflexão de E. J. Mishan, economista heterodoxo, feita originalmente em 1967 num outro contexto (The Costs of Economic Growth, Weinfield and Nicolson, p. 163). Numa sociedade “onde as ideias de certo e errado se tornam diversas e servem os próprios, numa sociedade na qual cada um se sente livre de actuar de acordo com a sua própria consciência constituída de forma privada, os antagonismos e os conflitos vão abundar. A atmosfera resultante de pouco à vontade e de tensão, ou o receio de cair numa anarquia, vão tornar a populaça muito mais receptiva a render-se às agências protectoras do Estado, com crescentes poderes de vigilância, controlo e detenção.”

5. Donald Trump e Stephen K. Bannon, o estratego da direita radical (alt-right) e identitária norte-americana, encontraram uma poderosa força política no nativismo branco reactivo (reaccionário e racista para os mais críticos). Este germina no ressentimento criado pelas políticas de identidade da esquerda multicultural no grupo tradicionalmente maioritário, sobretudo entre a população branca e masculina, de classe média ou média-baixa e trabalhadora. A politização da cultura e da identidade, feitas inicialmente pela esquerda, criaram agora um terreno onde cresce o ressentimento e a consciência identitária à direita (ver Eugene Scott, “The right disdains identity politics. But President Trump is proof it works for them, too” in Washington Post, 13/09/2017). Há ainda um outro grande responsável por esse ressentimento: a direita neoliberal — a direita do mainstream —, pela sua apologia de uma globalização muitas vezes desestruturadora do tecido económico e social, onde os derrotados e excluídos pouco lhe importam. Neste ambiente de permanente insegurança económica — criado pela direita neoliberal — e de insegurança cultural/identitária — criado pela esquerda multicultural —, parte crescente da população tornou-se propensa a soluções populistas mais ou menos radicais. O ressentimento (cólera) ligado ao facto de se sentir duplamente perdedora está amplamente expandido entre ela e torna-a uma poderosa força política. Claro que não é de esperar coerência ideológica, nem moderação discursiva e política, nos líderes populistas que lhe dão hoje voz e a mobilizam eleitoralmente.

6. No Brasil, com Jair Bolsonaro, estamos hoje a assistir a essa realidade em marcha. Para além do mal-estar económico e da corrupção associada aos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), a ascensão do antigo militar Jair Bolsonaro pode também ser explicada pelo ambiente de “guerrilha” identitária e de valores que se vive no país. Tal com ocorre Donald Trump nos EUA, a linguagem agressiva e incivilizada é uma peça deliberada do combate político para chegar a certo tipo de eleitorado. Em muitos brasileiros grassa o ressentimento pela perda de bem-estar económico. Mas há ainda um sentimento de ofensa profunda aos seus valores tradicionais por certas ideias e políticas de identidade dos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, como se vê no caso do "kit gay" (ver Reinaldo Azevedo, “‘Kit gay’ preparado pela gestão de Fernando Haddad na educação foi o primeiro a propor ‘transgêneras‘ em banheiro feminino. Esse rapaz sempre dando boas ideias…” in Veja, 18/02/2017). Mas o “kit gay”, expressão depreciativa criada pelos críticos, tem uma história mais complexa. Terá começado antes de Fernando Haddad ser Ministro da Educação, entre 2005 a 2012 (ver “Bolsonaro mente ao dizer que Haddad criou ‘kit gay’” in El País Brasil, 13/10/2018). A turbulência e a raiva são ainda visíveis pela réplica das lutas identitárias / feministas da América do Norte, com o movimento #EleNão a emergir como uma espécie de versão brasileira do #MeToo (ver “Rejeição de Bolsonaro entre as mulheres pode atrapalhá-lo no 2º turno”, in Exame, 26/09/2018).

7. As políticas de identidade nasceram de um ideal de justiça, com o objectivo de combater a discriminação de certos grupos sociais. Mas, na prática, colocam ênfase excessiva no que divide o ser humano em vez de se concentrarem no que o devia unir. Ao levarem longe de mais a diferença, e ao politizarem a cultura, geraram um ressentimento profundo noutras partes da sociedade. A perda do referencial universalista encerrando o ser humano no gueto da sua identidade social/grupal/tribal — muitas vezes entravando até a sua ascensão social —, é a mais problemática ideia “progressista” das últimas décadas. Como vimos, a oportunidade foi aproveitada pela direita radical que criou contrapoder, o que leva a uma clima de guerrilha cultural e identitária permanente na sociedade. Os partidos políticos, expressão da modernidade e do Iluminismo, estão a transformar-se em tribos identitárias pós-modernas. Esquerda e direita tornam-se conceitos esvaziados do significado ideológico original, para designarem, cada vez mais, um posicionamento identitário/tribal. Este ambiente de conflito e insegurança está a abrir a porta a um novo leviatã. A primeira metade do século XVII deixou em muitos europeus a ideia de viverem numa época de profunda insegurança e numa “guerra de todos contra todos”. Foi nesse contexto que surgiu um clássico do pensamento político ocidental — Lheviatan or the Matter, Form and Power of a Commonwealth Ecclesiastical and Civil (Leviatã, 1651), de Thomas Hobbes. A solução de Hobbes para essa extrema diversidade e conflitualidade foi o Leviatã (uma alegoria a um monstro do Antigo Testamento com uma força sobre-humana), ou seja, um governo central autoritário que pacificava e impunha ordem. Hoje podemos estar a caminhar para algo parecido pondo as sociedades democráticas em risco.

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