A lei e a justiça no bairro operário italiano de Arthur Miller

Do Alto da Ponte dá início a um mergulho dos Artistas Unidos na obra de Arthur Miller. Estreia-se em Viseu e segue em digressão nacional esta peça que coloca um homem entre a honra e a denúncia.

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“Neste bairro, passar por um advogado ou um padre na rua dá azar. Associam-nos a desgraças, e preferem não se aproximar.” Cruzar caminhos com advogados ou padres, diz-nos Alfieri, acabado de ser cumprimentado a contragosto por dois estivadores, é estar a pedir problemas com a lei ou com a morte. Alfieri, ele próprio um advogado, introduz num par de tiradas iniciais o ambiente de Red Hook, bairro nova-iorquino derramado sobre o sul da Brooklyn Bridge, a uma enorme distância da promessa de prosperidade em Manhattan, habitado em grande parte pela comunidade italiana que vai chegando, às golfadas e na clandestinidade, da Sicília e de outras paragens em que a pobreza e a fome no pós-guerra são um convite à partida.

Alfieri estende-nos o tapete para entrarmos, pouco depois, na sala de estar da casa de Eddie e Beatrice Carbone. Arthur Miller, autor de Do Alto da Ponte, peça a que os Artistas Unidos, com encenação de Jorge Silva Melo, agora se atiram – estreia-se em Viseu, no Teatro Viriato, a 14 e 15 de Setembro, e andará em digressão até Março, com passagens pela Guarda, Leiria, Cartaxo, Vila Real, Bragança, Ponte de Lima, Porto, Aveiro, Lisboa, Almada, Setúbal, Faro e Viana do Castelo –, descreve o espaço como “o apartamento de um homem trabalhador: asseado, exíguo, acolhedor”, no interior de um “prédio pobre”. E Alfieri estende-nos esse tapete porque aquilo que se segue é o desfiar de um caso que foge da repetição sistemática daqueles de que habitualmente se ocupa: “indemnizações, despejos, brigas familiares – os problemas mesquinhos dos pobres”.

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Ora é também dos pobres, dos desafortunados, dos desamparados que Jorge Silva Melo se costuma ocupar no teatro. “Julgava que conhecia Arthur Miller, até supunha a sua escrita pesada”, confessa o encenador ao Ípsilon. “Qual quê! Tudo vibra neste seu texto em que ousa uma tragédia com gente pobre (sabemos que, para Aristóteles, os pobres só podiam entrar nas comédias; nas tragédias os Grandes Destinos exigiam reis, semi-deuses ou heróis…), o realismo é muito menos pitoresco do que eu pensava, não precisamos de pôr as personagens italianas a comer esparguete em toalhas aos quadrados vermelhos, o debate é moral e o realismo serve de suporte a uma dolorosa meditação sobre a impotência.”

Daí a importância da questão que Alfieri se coloca logo de início: “Como poderia eu ter impedido este destino sangrento?” E é uma pergunta que existe porque o “debate moral” a que Silva Melo se refere é instalado com a perturbação de uma harmonia familiar em que Eddie é o senhor do poder com que controla as vidas da sua mulher e da sobrinha (órfã que cresceu com o casal, após a morte da mãe, irmã de Beatrice). O amor ambíguo que Eddie alimenta pela rapariga (Catherine), acabada de atracar na idade adulta, é agitado pela chegada de dois primos de Beatrice que chegam ao país e se abrigam naquela casa em fuga da devastada realidade italiana.

“Eddie nem sabe que está sexualmente preso pela sobrinha”, acredita o encenador. “Viu-a crescer, protegeu-a, não aceita que ela já seja livre. Na sua ingenuidade, Eddie não conseguia ver: toda a figura trágica é cega.” E é aí que começa a corrosão do dilema moral em que o estivador se vê metido. Num tempo e numa comunidade em que a família é sagrada e a ajuda prestada aos que alcançam a América para também tentar a sua sorte é uma obrigação de sangue, o fantasma de que Catherine possa ser “desviada” de casa pelo mais novo dos primos, Rodolpho, é um rude golpe para aquele homem que se vê atormentado pela possibilidade de denunciar os dois imigrantes clandestinos que acolhe em sua casa – e assim matar o mal para raiz.

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Rodolpho é não apenas a ameaça ao amor protector e total de Eddie por Catherine, mas também símbolo de uma vida que o estivador desdenha – ao contrário do irmão, Marco, que envia todos os trocados que ganha a trabalhar nas docas para alimentar e tratar da mulher e dos filhos deixados em Itália, Rodolpho gasta o dinheiro em discos, roupas e sonha com espectáculos da Broadway. Silva Melo vê nessa presença ameaçadora a imagem do “tempo que passou”. Rodolpho lembra Eddie de que Catherine se fez mulher, que não precisa mais de ser resguardada do terrível mundo exterior. “É a velhice e a impotência aquilo que o atormenta”, resume o fundador dos Artistas Unidos.

Lei e justiça

Localizada em pleno McCarthismo, com a desenfreada caça às bruxas que o senado e o FBI empreenderam na década de 1950 na tentativa de extirpar quaisquer fantasias ou utopias comunistas que pudessem germinar (e perigar) debaixo da afirmação plena do capitalismo, a peça existe, obviamente, num tempo de denúncias. Mas joga com esse contexto muito particular que é a comunidade italiana (e siciliana em particular), em que a honra é um bem por demais valioso. Pelo que entre a prisão e a desonra, o mais pesado castigo infligido a um indivíduo é, certamente, aquele que implica a rejeição e o ostracismo a que possa ver votado pelos seus pares.

Do Alto da Ponte alude também à lei e à justiça como sendo, por vezes, conceitos discordantes e contraditórios – a lei obriga ao repatriamento daqueles dois homens cujo trabalho serve o país, mas a sua condição de imigrantes ilegais não; a justiça deveria, por sua vez, salvaguardar um cidadão que trabalha para pôr comida e medicamentos na boca dos filhos. A legalidade e a moralidade são, assim, jogadas em permanência no interior daquele apartamento. Para Silva Melo, “a tragédia sempre foi isso – uma lei antiga é esmagada por uma lei moderna”. “Os persas são derrotados pelos gregos, Antígona por Creonte. E aqui os sicilianos clandestinos que emigraram para as docas de Nova Iorque têm de se conformar com as leis novas.” E é essa a razão pela qual, recorda Silva Melo, Marco desabafa, desesperado, “Não entendo este país”.

A frase de Marco poderia ser largada, tal e qual, no presente. A perseguição à imigração, a luta entre legalidade e moralidade, um país pronto a cuspir as pessoas que acolhe em quartos escondidos mas delas se serve para manter a operar a pesada máquina da economia, tudo isso assenta que nem uma luva aos Estados Unidos de Trump. Há três anos, quando revia a tradução (de Ana Raquel Fernandes e Rui Pina Coelho) para publicar nos Livrinhos do Teatro que os Artistas Unidos editam em parceria com as Edições Cotovia, Jorge Silva Melo arrepiava-se já com a forma como aquelas falas pareciam saltar directamente das páginas para cair sem aparato nem fricção neste tempo: “Quem conseguiria hoje entrever tão claramente a realidade que se passa aqui ao lado? Nas nossas ruas? Porque é que o teatro não consegue produzir agora um texto como este? O que é que nos falta? E foi quando decidi: temos de pensar em Miller e com Miller.”

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