Ainda se recordam dos “pen pals”?

Para a geração mais velha dos millennials, esta realidade dos pen pals terá feito, em algum momento, parte das suas vidas, nem que seja naquele ano em que a professora de inglês nos correspondeu com um outro aluno do Reino Unido

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Kelly Sikkema/Unsplash

Beijar o papel que encerra confidências, sonhos, tristezas, alegrias e fotografias, com a saliva da vida, tornou-se uma sensação em extinção, gravada na memória de muitos de nós. A razão não está na melhoria drástica da cola da borda dos envelopes, mas sim no tempo.

O tempo transformou-se, quase do dia para a noite, se pensarmos em retrospectiva: as cartas foram trocadas pelos emails, através do comodismo, do materialismo e da preguiça humana à velocidade da luz.

E, com esta troca, muitos amigos que se iriam fazer além fronteiras, pintando as sílabas e as histórias da vida real de cada um em vários idiomas, nunca se conheceram.

Não falo dos "amigos" que somamos no Facebook e no Instagram em milésimas de segundo, podendo, inclusive, caçar alguém de qualquer parte do mundo com apenas um clique.

Não falo da partilha de experiências e de interesses no Pinterest que nos permite conhecer, numa semana, as particularidades, verdadeiras ou não, de alguém cujos interesses conheceríamos de forma natural, genuína, espontânea e bonita em um ano ou, quem sabe, em dois na vida palpável e real.

Não falo dessas vidas perfeitas fabricadas para "inglês ver" nas redes sociais. Falo de pen pals ou, se preferires, amigos por correspondência. Pessoas que abrem a alma e as suas vidas para um pedaço de papel esperando, em troca, o mesmo do outro. Pessoas que se correspondem regularmente, atravessando distâncias geográficas com a história das suas vidas ou com as suas ânsias, as suas introspecções e as suas alegrias.

São partilhas genuínas para um pedaço de papel em branco que nos permite debruçar sobre as profundezas de nós mesmos.

Para a geração mais velha dos millennials, esta realidade dos pen pals terá feito, em algum momento, parte das suas vidas, nem que seja naquele ano em que a professora de inglês nos correspondeu com um outro aluno do Reino Unido.

Já para os mais adultos na escada da vida, muitos destes pen pals foram pessoas que conheceram ao fim de 40 anos de correspondência, com muitas fotografias, ora de casamentos, ora dos filhos e dos netos que chegaram com o curso da vida pelo meio.

A Helena viajou naquele intenso Verão dos seus 19 anos pelas ilhas gregas onde vivia a sua amiga por correspondência. Já a amiga ficou a conhecer o nosso belo Portugal no Verão seguinte. A Joana manteve, anos a fio, vários pen pals, porque muito daquilo que fazia parte de si mesma não era possível partilhar com um ser humano com uma presença física, de carne e osso. Fez dessa partilha uma terapia para os traumas que a fechavam numa jaula de emoções dolorosas.

Eu insiro-me no exemplo da professora de inglês. No entanto, e como as cartas não estão extintas, nem a tinta é uma realidade virtual, não existem limites para fazer um(a) novo(a) amigo(a) por correspondência agora na idade adulta.

Num mundo onde nos é permitido ser humanóides, sentir sem medida, vestir um(a) novo(a) namorado(a) com a chegada de um novo Verão, através da ajuda preciosa do Tinder, rejeitar qualquer tipo de sofrimento ou analisar aquilo que corre menos bem, viver com a cara mergulhada no ecrã e nas redes sociais no decorrer de todas as actividades quotidianas, é necessário recordar que ser-se humano ainda é uma escolha possível e individual.

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