“Linger”

Com a partida, inesperada, da Dolores, somos confrontados com a nossa própria morte. A Dolores era sete anos mais velha do que eu. Do que nós. Com a partida, inesperada, da Dolores, morre uma parte de nós. Parece um cliché mas não é

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Arben Celi/Reuters

É preciso viajar no tempo, não que eu queira, não quero, mas é preciso, mais ou menos até ao nono ano e à garagem do Pedro, na casa do Pedro, e à minha primeira festa fora de casa, com direito a sumo, bolos e tudo o que uma criança quer, sem álcool, nem tabaco, à mistura que nós éramos uns rapazes, e raparigas, bem comportados. Não me lembro se seria sexta ou sábado, e posso estar enganado, mas creio ter sido durante a semana. Uma coisa é certa, era de noite, porque é à noite que tudo acontece, quando ninguém vê, nem nós, e ninguém está à espreita.

O Luís está encarregue da escolha musical e, inevitavelmente, começa o tocar o Linger, dos Cranberries. As luzes giram ao ritmo da música e, empolgado, excitado de coração aos saltos, salto para o meio da pista, é a minha oportunidade, estendo a mão e convido a Luísa para dançar. Nos meus sonhos a Luísa sorri, levanta-se, estende a mão e toma a minha, e depois a outra mão. Juntos fintamos as luzes e dançamos no escuro, falamos no escuro e baixinho fazemos juras de amor eterno antes daquele que será o meu primeiro beijo, o nosso primeiro beijo.

Infelizmente, não foi nada assim, desde logo porque eu nem sequer sei dançar, 39 anos volvidos e ainda sou um pé de chumbo, pelo que ao saltar para o meio da pista fui motivo de risota geral, a começar pela Luísa e as amigas dela.

Desajeitado, ainda ensaiei uns passos no meio da pista seguidos de uma pirueta e ia-me estatelando no chão. A primeira fotografia da noite.

Mas a música ainda não tinha acabado, e se a Luísa não queria dançar o mesmo não posso dizer da Rita nos braços do Miguel, e o Miguel, que nem sequer gostava assim tanto da Rita, na verdade andava atrás da Patrícia, sem saber o que fazer. Ah, mas homem é o sexo fraco e se quem escolhe é a mulher, a Rita já tinha escolhido o Miguel, o qual cedo perceberia, através de um beijo, e a seguir outro e outro, estar casado para o resto da vida.

Em 1993, numa garagem à noite, um grupo de miúdos dançou o Everybody else is doing it, so why can’t we? de uma ponta à outra. O Linger tocou três vezes e no fim a Luísa ainda veio falar comigo. Namoros começaram, outros nem por isso, como é o caso deste vosso amigo, amizades consolidaram-se e ninguém se esqueceu da nossa primeira festa, antes de tantas outras.

Com a partida, inesperada, da Dolores, somos confrontados com a nossa própria morte. A Dolores era sete anos mais velha do que eu. Do que nós. Com a partida, inesperada, da Dolores, morre uma parte de nós. Parece um cliché mas não é, é a vida, a nossa, enquanto a temos. Nunca mais nos esqueceremos da Dolores. Para onde quer que vá, esperemos que nunca se esqueça de nós.

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