Pela expurgação de faits divers

É lamentável a forma como foi dada a notícia da indicação do alegado ghostwriter de José Sócrates para integrar um dos júris dos exames orais das provas de acesso à magistratura.

Nesta “era da modernidade pós-tardia”, os faits divers, diria que existentes desde os primeiros hominídeos, ganham particular dimensão, em virtude dos media e das redes sociais. Foi o que sucedeu com a indicação de um docente para integrar um dos júris dos exames orais das provas de acesso à magistratura, realizadas no Centro de Estudos Judiciários (CEJ). E isto na medida em que, como noticiado, esse professor universitário terá já sido constituído arguido em processo conexo com a Operação Marquês por, alegadamente, ser o ghostwriter da tese de mestrado de José Sócrates.

A forma como a notícia foi dada é lamentável e viola o Estatuto do Jornalista e as suas normas deontológicas, porquanto não cumpriram os profissionais em causa o dever de se informarem adequadamente sobre os factos noticiados. Não seria nada difícil fazê-lo: bastaria compulsar a lei que regula o acesso à magistratura (Lei n.º 2/2008, de 14/1) e seu regulamento (Regulamento n.º 339/2009, de 5/8) para concluir que o director do CEJ se limita a oficiar as várias Faculdades de Direito, no estrito cumprimento de dever legal, para que estas indiquem docentes para as áreas temáticas assinaladas. E aí cessa a responsabilidade e o dever da estrutura directiva da nossa escola da magistratura. A partir desse ponto, sob pena de violação da dita lei e da autonomia universitária, cabe ao director de cada faculdade proceder a esta indicação que, naturalmente, tem de ser publicada em Diário da República, sendo o aviso assinado pelo director do CEJ, visto ser o titular do órgão administrativo competente. O docente em causa, se for verdade que é arguido – o que ignoro –, goza da presunção constitucional de inocência e não está limitado em qualquer dos seus direitos, excepto aqueles que derivam do termo de identidade e residência. Donde, legalmente, não há sequer “facto”. Pode discutir-se se o bom senso aconselharia outro cuidado por parte da Direcção da Faculdade. Mas essa é uma questão diversa.

O que se não pode pôr em causa é a lisura de todo o procedimento administrativo conducente à escolha dos auditores de justiça. Falo por experiência própria. É este o sexto ano em que tenho a honra de integrar um dos júris das provas orais e em todos eles – o que esta sexta-feira termina não é excepção – posso asseverar o rigor, a isenção, a imparcialidade e o elevado grau de exigência. Mais: os júris são integrados por magistrados judiciais e do Ministério Público (MP), advogados e professores universitários – limitando-me aqui à via de acesso académica, pois a profissional conta ainda com o concurso de jornalistas, escritores, historiadores, entre uma panóplia de representantes da dita “sociedade civil”.  Quase todas as profissões jurídicas são convocadas a escolher aqueles que, nos termos da CRP, administrarão a justiça em nome do Povo – não é por acaso que na Alemanha ou na Itália, p. ex., todas as decisões judiciais têm a mesma fórmula inicial: “em nome do Povo” – e cumprirão as competências atribuídas ao MP. Não conheço forma mais aberta de escolha de outros “operadores judiciários”. Assim como não compreendo como se pode dizer que a legitimidade de juízes e procuradores se acha afectada por este “episódio”.

O nosso ordenamento jurídico – e bem, quanto a mim – afastou a eleição de juízes e procuradores como forma de legitimação democrática, bem conhecendo as perversões inconcebíveis nos quadros de um Estado de Direito a que esse sistema conduz, p. ex., nos EUA. Os eleitos tendem a pugnar, para me limitar ao Direito Penal, por sanções “exemplares”, aumentando desproporcionalmente o nível de punitividade, por acharem que isso é o desejado pelos eleitores. Donde, existe uma legitimação democrática indirecta entre nós, assente no mérito de quem ingressa nas magistraturas, avaliado pelos seus conhecimentos técnicos e perfil demonstrados para o exercício das funções, sujeito a órgãos superiores administrativos autónomos e em que os magistrados não se encontram em maioria. Ademais, existem inspecções periódicas ao nível da 1.ª instância (por certo em moldes que carecem de alguma revisão), para além do saudável escrutínio pela comunidade em geral e pela comunicação social, cada vez mais. Essencial sublinhar a imperatividade de não ingerência dos poderes legislativo e executivo no judicial, o que me leva a questionar a nomeação do PGR sob proposta do Governo. Bem sabemos que uma das funções do MP é representar o Estado, mas também não se ignora que, ao menos em tese, pode existir alguma tentação de condicionamento desta magistratura pelo Governo. Donde, teria preferido que o nosso legislador constituinte conferisse essa competência exclusivamente ao Presidente da República, ouvindo, sem cariz vinculativo, o Conselho de Estado e o Conselho Superior do MP. Também não me parece vantajosa a hipótese, algumas vezes aventada, de um Conselho Superior único para as duas magistraturas, mesmo que sob a presidência do Chefe de Estado, atentas as especificidades de cada uma delas.

O CEJ é uma instituição que goza de elevado e merecido prestígio, tendo vindo a desenvolver cada vez mais acções de formação contínua e a abrir-se à sociedade. Elogio para vultos como Laborinho Lúcio, Armando Leandro, Barbas Homem e o actual director do CEJ, João da Silva Miguel e a sua equipa, por terem sabido e saberem interpretar os sinais dos tempos, introduzindo disciplinas como o Inglês ou a informática jurídicos e acompanhando a autonomização de ramos de Direito emergentes. Mas também a proximidade à Cultura, com múltiplas palestras de especialistas de várias áreas do conhecimento, relembrando com particular carinho a celebração do Dia da Poesia.

Confundir uma árvore com a floresta, ainda por cima quando a árvore não está doente, mas tão-só pode estar menos frondosa, isso sim é um mau serviço à Justiça e à Democracia.

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