O pingue-pongue entre Marcelo e Costa

No Orçamento do Estado Marcelo e Costa parecem puxar para o mesmo lado e utilizam o chumbo do OE como uma ameaça de dissolução prematura da Assembleia.

Prossegue o pingue-pongue mediático entre o Presidente da República e o primeiro-ministro. À entrevista dada por Marcelo ao PÚBLICO e à Renascença responde Costa com outra entrevista publicada em duas partes (uma ontem, outra hoje) no Diário de Notícias (DN). E ambas são exercícios do estilo de cada um, mas um pouco às avessas, porventura, da natureza das respectivas funções: apesar das cautelas e das distâncias institucionais, Marcelo acaba por ser mais directo e menos calculista e oblíquo do que Costa.

É certo que o primeiro-ministro tem nas mãos um dossiê escaldante, ainda por cima nas vésperas de um congresso socialista – o caso Sócrates –, ao qual tenta fugir com a sua conhecida habilidade retórica, mas sem ser convincente e sem conseguir iludir a enorme incomodidade e as indisfarçáveis contradições que a questão tem provocado no PS. De qualquer modo, o que talvez tenha marcado mais notoriamente as duas entrevistas (falo apenas da primeira parte da entrevista do primeiro-ministro) é a forma como Marcelo e Costa encaram os respectivos destinos políticos e as suas posições sobre a Justiça e a legislação anti-corrupção (com Marcelo a ser bastante mais incisivo).

Como Marcelo anunciou que não se recandidataria se acaso se repetisse o cenário dos incêndios do ano passado, o DN tenta colocar na boca de Costa em manchete (embora sem utilizar aspas) que este se demitiria se o Orçamento do Estado (OE) fosse chumbado no parlamento. Ora, Costa limita-se a fazer uma constatação de facto, dirigida sobretudo ao PCP e ao Bloco – a de que o chumbo do OE provocaria uma queda automática do Governo – e não uma decisão por vontade própria, como é o caso de Marcelo. Aliás, Costa parece dar praticamente por adquirido o voto da aliança parlamentar com os partidos à esquerda do PS por falta de alternativa e não pré-anuncia, como o Presidente, qualquer decisão voluntária de não recandidatura ao seu cargo. Aí, de resto, Marcelo e Costa parecem puxar para o mesmo lado e utilizam o chumbo do OE como uma ameaça de dissolução prematura da Assembleia.

Em contrapartida, os dois divergem claramente sobre a questão dos incêndios e o problema da lentidão da Justiça. As recentes e penosas atrapalhações governativas em torno da prevenção dos fogos – apesar da declaração de Costa de que não se demitiria num cenário de repetição das calamidades, ao contrário do aviso de Marcelo acerca de uma não recandidatura pelo mesmo motivo – tem vindo a mostrar uma tendência recorrente nesse domínio: amadorismo, improviso e ocultação “politiqueira” dos factos, a qual tem um efeito de boomerang contra o Governo. Já no campo da Justiça, Costa parece claramente refém do fantasma de Sócrates, ao declarar não querer imiscuir-se no território sagrado do poder judicial, em nome da separação de poderes, enquanto Marcelo aponta a lentidão excessiva da Justiça como uma ameaça ao Estado de direito e um estímulo ao populismo.

A prova de que Marcelo tocou na ferida – que Costa não quer ou pode ver – está na divulgação televisiva dos interrogatórios judiciais a Sócrates (um dos motivos inconfessáveis que levaram, aliás, o PS a demarcar-se do seu antigo chefe). Se os agentes judiciais recorrem às televisões para difundir matéria que deveria permanecer reservada até ao julgamento dos arguidos é porque esses agentes se consideram incapazes de fazer funcionar a Justiça a tempo e horas e tentam iludir esse facto através de uma fuga para a frente.

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