Lista dos devedores: o passo seguinte à “rejeição” de Sócrates

Afinal, a bancarrota foi culpa da crise ou foi o resultado de más opções políticas e das obsessões de um líder que foi defendido e protegido até à semana passada?

1. O sobressalto cívico e o virtual terramoto político, inaugurado pela exigência cirúrgica – sóbria, equilibrada e não demagógica – de Rui Rio para o esclarecimento cabal, no plano político e ético, da situação de Manuel Pinho não pode nem deve ser interrompido. Ele alastrou da situação particular de Pinho para a teia e o transe que envolvem José Sócrates, enquanto antigo chefe de Governo.

Esse alastramento obrigou muitos daqueles que foram protagonistas directos das políticas e defensores impenitentes do legado a Sócrates a distanciarem-se do antigo líder de forma invulgarmente crua. Esta “desvinculação” suscita obviamente perguntas que têm de lhes ser feitas e gera perplexidades que não podem ser escondidas. Onde estavam eles entre 2007-2017? Porque não hesitaram nem mediram as palavras de defesa de Sócrates, das suas atitudes e até de muitas das suas políticas? Não se lembram da claustrofobia democrática, logo denunciada em 2007, ainda sob a liderança de Marques Mendes no PSD, estava aliás António Costa tranquilamente sentado na bancada do governo? E acaso não se lembram que essa acusação da claustrofobia não visava apenas o bullying efectuado sobre a comunicação social e até a liberdade de expressão individual (de funcionários públicos, por exemplo – evoque-se o célebre caso Charrua)? Mas que visava também a concentração do controlo policial, posta sob a tutela directa do primeiro-ministro e deslocando a área de “inteligência” internacional da Polícia Judiciária, tudo à época dirigido pela pasta da Administração Interna? Já se terão olvidado as suspeitas do caso Cova da Beira e do caso Freeport? Quem se esqueceu da novela da licenciatura de José Sócrates (compare-se a veemência usada com Barreiras Duarte e veja-se o duplo padrão)? Que dizer do controlo férreo da Caixa Geral de Depósitos, alicerçado em Armando Vara (cuja nomeação tinha levado à demissão do Ministro das Finanças que se recusou a assiná-la)? E, pior ainda, que dizer do assalto ao Millenium BCP? Será que os ministros de ontem que são ministros de agora não viram, não ouviram, não suspeitaram? Será que os dirigentes de ontem que são dirigentes de hoje se podem dizer defraudados e enganados? Será que, no contacto diário e informal com José Sócrates, nunca duvidaram, nunca se perguntaram, nunca pensaram no que aquela liderança poderia fazer ao rumo do país? Que juízo faziam então das inúmeras críticas e denúncias que tantos de nós não calámos nem omitimos? Como podem envergonhar-se tão tardiamente das vicissitudes da vida de José Sócrates e orgulhar-se do legado político dos seus governos que deixou o país na bancarrota? Ou será que não vislumbraram nenhuma ligação entre o modo extravagante e megalómano de estar na política e de fazer política do ex-primeiro-ministro e o resultado previsível das políticas em que doentiamente insistia?

Bastava estar nas bancadas da Assembleia da República, não era preciso estar nas bancadas do Governo, para perceber e saber que havia algo de podre no reino da Dinamarca.  

2. O passo seguinte, que ninguém deve calar e para o qual é indispensável um clamor da opinião pública e da sociedade civil, consiste numa outra exigência feita por Rui Rio, bem antes deste último desenvolvimento. E esse passo é a divulgação da lista de grandes devedores da Caixa Geral de Depósitos, do agora Novo Banco e, bem assim, do Millenium BCP. A verdade é que, como acima se recordou, no consulado dos dois piores governos da era democrática – os dois governos PS chefiados por José Sócrates – a Caixa Geral foi praticamente sequestrada, a administração do BCP-Millenium foi tomada de assalto e o então Banco Espírito Santo coabitou em regime de conivência e cumplicidade. Afecte que partido afectar, atinja que elite política, económica, social ou cultural atingir, doa a quem doer, custe a quem custar, os portugueses, enquanto cidadãos, eleitores e contribuintes, têm direito a conhecer esta lista. Por causa de políticas desastrosas – em grande parte induzidas por intenções ínvias –, o país entrou numa situação de bancarrota, um povo inteiro teve de ser sujeito a longos anos de austeridade e de sacrifícios, ainda não terminados. É absolutamente imperioso que conheçamos essa lista.

Sabemos que o boicote – não apenas do PS, mas também do Bloco de Esquerda e do PCP – à Comissão de Inquérito sobre a Caixa Geral de Depósitos impediu o acesso a essa lista. Sim, é preciso dizê-lo com todas as letras: o Bloco, que agora quer comissões de inquérito de largo espectro, e o PCP que parece querer um inquérito geral aos 43 anos que passaram sobre o 25 de Novembro, impediram o acesso à lista de grandes devedores. E com isso são, ao lado do PS, verdadeiras forças do bloqueio aos princípios da transparência e da ética que tanto apregoam e alardeiam. Os cidadãos que são eleitores e que são contribuintes têm um direito elementar – diria mesmo, fundamental – a saber como chegaram os bancos à situação em que chegaram. Não vale a pena culpar a troika, Passos Coelho ou a sempre mal citada “direita”. Não. Temos mesmo de saber como foram geridos os bancos que estavam na órbita do Governo de José Sócrates e que ele pôs ao serviço de uma certa estratégia.

3. Depois das confissões tardias e postiças de vergonha e de desonra, há algo que os autores das confissões têm de esclarecer. Afinal, a bancarrota foi culpa da crise ou foi o resultado de más opções políticas e das obsessões de um líder que foi defendido e protegido até à semana passada?

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