Este filme é para o hip-hop “tuga” se ver e ouvir a quatro dimensões

Hip to da Hop tem estreia marcada para 2018 e aborda os quatro maiores pilares do movimento: o rap, o “b-boying”, o “graffiti” e o “djing”. Tudo a bordo de uma narrativa imprevisível, mas pensada.

O hip-hop português é um grande puzzle cujas peças se encontram espalhadas um pouco por toda a parte. Sem quase darmos conta, vemos esta cultura em cada graffiti ou tag inscrito em paredes já gastas. Passámos por prédios amontoados entre si sem saber que, num dos quartos daqueles apartamentos, pode estar alguém a produzir beats para se encaixarem em palavras cantadas. Desde o surgimento do movimento em Portugal, os principais pilares do hip-hop foram-se interligando, fazendo com que a história seja hoje contada “organicamente”. António Freitas, 36 anos, e Fábio Silva, 25, foram à procura dessas conexões e realizaram Hip to da Hop (produzido pela Follow Creative Studio), que se assume como “uma viagem por Portugal entre quatro vertentes”: o graffiti, o b-boying, o djing e o rap.

Com formação na área da literatura, comunicação e design, os dois amigos conheceram-se nas filmagens de um anúncio publicitário — ambos trabalham como realizadores. Aperceberam-se que partilhavam o gosto pelo hip-hop e que tinham a vontade de fazer algum projecto ligado ao movimento, ao qual também pertencem. António grafitou, durante anos, como Kier, e fez parte de uma vaga de writers; por sua vez, Fábio foi um dos coordenadores do H2tuga, um dos primeiros sites sobre hip-hop em Portugal.

A aventura das filmagens durou mais de um ano. As rodas giraram pelas estradas que conectam o hip-hop em Portugal e levaram António e Fábio a diversas paragens. Para além do Porto e de Lisboa, que simultaneamente viram nascer o movimento por cá, o caminho também se estendeu às longas planícies alentejanas, a Leiria e ao Algarve. Todas as histórias contadas em Hip to da Hop são do presente, interligando-se num fio condutor sem destino previamente anunciado. Isto porque “uma história leva sempre a outra”, e a distância geográfica não apaga as fontes que, desde os finais da década de 1980, edificaram o hip-hop “tuga”. Não existe o “resgate” de memórias gravadas que vimos no documentário Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes, de Francisco Noronha e Catarina David, sobre o qual já falamos aqui.

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António (à esquerda) e Fábio (à direita) já estavam ligados ao hip-hop antes do documentário DR

No entanto, Hip to da Hop não se faz só das personagens mais conhecidas dentro da cena em Portugal: “Grande parte das imagens do filme é de pessoas a pintar, a rappar ou a dançar”, explica António. O objectivo maior é apresentar a ligação entre “os quatro principais pilares do hip-hop, não propriamente os protagonistas”, pelo que algumas das caras presentes no filme são desconhecidas do grande público. Essa escolha reflecte-se, por exemplo, na ausência de José Mariño, que introduziu o rap no início dos anos 90 nas rádios portuguesas (Rádio Energia e, mais tarde, com o programa Repto, na Antena 3). Fábio aponta o radialista e apresentador de televisão como uma grande referência do quinto pilar do hip-hop, que se caracteriza pelo “conhecimento da cultura, a sabedoria”.

Talvez os dois realizadores se tenham tornado, também, parte integrante desse outro pilar do movimento; contudo, ambos concordam que o mais importante é, por um lado, “ter um bom filme, para pessoas dos oito aos 80, dentro e fora da cultura”, e, por outro, “gerar debate” – não só entre a audiência, mas também com “as pessoas que fazem parte desta família”. Fábio aponta que foi dada elevada importância “à imagem, à estética e a uma boa narrativa” porque este “não é um filme fechado”. Assim, em Hip to da Hop cabem as mais variadas opiniões relativas ao estado da arte; se há quem ache que o hip-hop morreu, também há quem o veja mais vivo que nunca.

E os autores? “Essa é uma resposta em aberto porque, apesar de estarmos no meio, quisemo-nos distanciar ao máximo. Do ponto de vista cinematográfico, o importante era termos um produto genuíno”, responde António. Agora, ao fim de dois anos de trabalho, o filme deverá estrear-se no próximo ano. Só falta a pós-produção de áudio — é que até a banda-sonora foge de lugares-comuns e surge de forma natural. “Falámos com dois produtores que estavam a preparar uns beats, e a ideia de serem eles a fazer a banda-sonora partiu daí”, recorda António.

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Hip to da Hop aborda profundamente o b-boying, o djing, o graffiti e o rap DR

Independente, orgânico e a fugir ao documental

Não vale a pena esperar por um narrador a guiar as histórias: “Não há voz off, tudo o que se ouve são as vozes dos entrevistados”, garantem. E são, ao todo, mais de 50 as personalidades que falam do que o hip-hop “tuga” foi, é e será, num movimento circular que desenha uma grande teia: mesmo quando Fábio e António não conseguiam entrevistar alguém, outro interveniente acabaria por referir essa pessoa ou, então, momentos que não foram presenciados, como as festas no Comix, na rua de Cedofeita, no Porto. 

Tudo isto sempre “de forma independente e sem patrocínios”, num trabalho feito “nos tempos vagos”. Primeiro, queriam ir a Espanha e aos Açores, mas a falta de financiamento fê-los ficar pelo continente. “Tivemos que optar pelo plano b e, dentro dos recursos que tínhamos, conseguimos algo com princípio, meio e fim”, conta Fábio. No final, fica a certeza de que este foi um trabalho “enriquecedor e prazeroso”, nunca um sacrifício. Agora, esperam mostrar a essência do movimento em Portugal, mudar “a visão distorcida que algumas pessoas têm do hip-hop” e fazê-lo valer como parte integrante da cultura portuguesa.

Certo é que Hip to da Hop surge numa altura em que o movimento que lhe empresta o nome se faz ver e ouvir um pouco por toda a parte. É usual verem-se festivais com rappers ou grupos com sonoridades ligadas ao hip-hop como cabeças-de-cartaz, “e cada vez mais há quem se identifique com a cultura”, que se expandiu. “Há 30 anos, era tudo focado nas quatro vertentes, mas hoje há quem ache que existem muitos mais pilares para o hip-hop, como a moda, por exemplo”, explica António. “A coisa massificou-se, e isso trouxe coisas positivas e negativas, como é normal”. Por cá, os festivais de arte urbana têm-se multiplicado, e exemplos há do casamento entre a música e essa vertente, como o Festival Iminente. Já na música, Slow J é a promessa tornada certeza e Allen Halloween ou Piruka enchem playlists de gentes de todas as idades. Nos meandros da dança, também há exemplos de sucesso em Portugal: os Momentum Crew foram campeões mundiais de breakdance em 2016.

“Houve uma luta interna para credibilizar o hip-hop em Portugal”, contam os realizadores do filme, e o mesmo aconteceu um pouco por todo o mundo. No entanto, persiste a génese: tudo isto é feito de um “roubo assumido”, de uma “reciclagem”. Os DJ e produtores recortam sons daqui e dali, os graffitis já eram utilizados como arma de protesto bem antes do nascimento do hip-hop; segundo Richard Colon, conhecido como Crazy Legs e um dos primeiros b-boys a ser conhecido pelo grande público, o b-boying/girling tem grande influência das artes marciais.

Como disse Grandmaster Caz no documentário Something From Nothing (2012)“o hip-hop não inventou nada, o hip-hop reinventou tudo”. É essa característica que distingue o movimento que burilava no Bronx na mesma altura que Billy Joel cantava, ao piano, New York State of Mind – décadas depois, Jay-Z e Alicia Keys inspiravam-se nessa ode à cidade em Empire State of Mind, de 2009. O hip-hop circula, reinventa-se e recicla tudo o que o mundo dá para ver e ouvir. 

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