Alcoolemia e esperança

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

Foto
Adriano Miranda

Ano novo é esperança proverbial de vida nova, mas nos Janeiros conhecidos tem havido mais preços a aumentar do que vida a renovar-se. No entanto, mesmo em tempos de escassez de fé e de transfiguração semântica da caridade em solidariedade social, a esperança costuma aguentar-se, bem agarrada à rocha nua (já limpa de tudo o que havia para comer dentro ou fora de época), como último motor dos que não têm forças para fazer nada por si próprios nem têm conhecimentos no Facebook que façam alguma coisa por eles. Em época em que se define a pobreza por falta de automóvel e a pobreza extrema por falta de telemóvel, tem de restar a esperança de, por pouco plausível que seja, um dia se chegar ao sucesso de possuir pelo menos uma dessas formas de mobiliário mais apetecíveis.

Aqueles que já têm automóvel, em consequência dos festejos mais tradicionais de passagem de ano, celebrados à força de álcool mais ou menos disfarçado em designações benignas ou sofisticadas, são por vezes apanhados nas redes daqueles que se espera que com eles joguem ao gato e ao rato, mas sem exageros. Entre os azarados ratos convidados pelos oficiais felinos a “soprar no balão” há os que, sem saber como, são dados como apresentando uma taxa de álcool no sangue alguns anos-luz acima do limite máximo fixado na lei, o que, normalmente, não constitui, para os envolvidos, caso para alarme, já que os limites são interpretados localmente como sugestões ou palpites e, em qualquer caso, apenas dirigidos a forasteiros que não estão habituados a beber.

À taxa de álcool no sangue chamam alcoolemia os que não foram apanhados em contravenção, os que estão em plena posse das suas faculdades intelectuais e os que são curiosos destas chinesices do português (sendo este último factor o mais relevante). Já os que fazem disparar as luzes e apitos dos alcoolímetros da polícia, que demonstram sérias limitações de orientação e locomoção ou que apresentam um ou outro noticiário televisivo ou radiofónico têm tendência a pronunciar “alcoolémia”, o que, por si só, é uma indicação imediata de 1,2 gramas de álcool por litro de sangue para cima.

Para facilidade de memorização, tal como se faz com as crianças e os ratos de laboratório, e na impossibilidade técnica de distribuir choques eléctricos, recorremos à rima como técnica mnemónica: diga e escreva alcoolemia, tal como glicemia (e, portanto, hipoglicemia e hiperglicemia), septicemia, leucemia, anemia, anorexia, bulimia, arritmia, hemorragia, mialgia, terapia, hipotermia, hipertermia, melancia, mesmo – e isto é muito importante – que o seu técnico laboratorial, de meios complementares de diagnóstico, enfermeiro ou médico insista em acentuação divergente da atrás indicada. Para sua tranquilidade, a convicção com que aqueles entoarem outras pronúncias pode não se dever a alcoolemia ilegal, mas apenas a terem estudado em manuais não traduzidos de línguas afins ou a repetirem escrupulosamente as pronúncias ouvidas a professores que estudaram em manuais não traduzidos. Um exemplo flagrante e aparentemente imorredoiro desta prática sustentada é a forma errada “crâneo”, que sobrevive em editais e tabuletas de departamentos hospitalares e em receituários médicos e que mais não é do que a palavra espanhola que quer dizer crânio.

Outras expressões patuscas ouvidas em meio hospitalar e fisioterápico são as de que um doente “está a fazer gelo”, o que imediatamente nos informa de que alguém ligado à indústria da refrigeração e congelados está a desenvolver a sua actividade em locais aparentemente reservados a práticas de enfermagem. O que quereriam dizer era: “O doente está a receber a aplicação de gelo” ou “o doente está a fazer um tratamento com gelo”. Então por que é que não dizem?

De igual modo, há quem pergunte: “Está a fazer alguma medicação?...”. E a primeira resposta tem de ser um olhar perdido na perplexidade: então eu, que nem sei pegar num berbequim para abrir um buraco na parede sem causar um curto-circuito no quadro eléctrico ou uma inundação nas escadas do prédio, serei capaz de montar uma pequena indústria farmacêutica em casa? Mas às vezes lêem o meu olhar fixo e aflito como sinal de perturbação mental e receitam-me logo uns calmantes, dizendo-me em voz desnecessariamente alta: “Ó sr. António, vai fazer esta medicação!...”

Então eu, que não sou farmacêutico, vou fazer aquela medicação? Mas não há genéricos já prontos a comprar e a tomar?... Onde é que eu vou descobrir uma farmácia com medicamentos manipulados em que me ajudem lá num cantinho a fazer os meus próprios medicamentos? Mas porquê? E quando eu pergunto “mas não há medicamentos destes já feitos? E os tão famosos genéricos?...”, tomam isto como uma dificuldade minha em lidar com a realidade, dizem-me que eu “estou a descompensar” (a descompensar o quê?...) e dão-me mais um ansiolítico, é claro, “para eu fazer”. Um brutal esforço de contenção e de concentração “zen” da minha parte acaba, por vezes, por compensar: o que me queriam perguntar era, afinal, se eu estava a “tomar alguma medicação”. E o que me queriam dizer, afinal, era: “Ó sr. Moreira, vai tomar esta medicação”. Então por que é que não dizem?!...

Resta a esperança do ano novo.

Correio premente

De M. Antonieta Silvado, freguesia de Rio Mau, concelho de Penafiel: “Um vizinho disse-me para escrever praí porque tenho um neto que não me come nadinha a não ser hamburgers [hambúrgueres] com batatas fritas ou bolicaus [Bollycaos]. Sopa só se for com batatas (fritas). O que hei-de fazer, sr. Adélio?”

Minha Senhora, creio ter havido lapso do seu vizinho, mas eu depois trato directamente com ele. Entretanto, para não se perder o dinheiro que gastou no seu selo, sugiro-lhe que compre num dos muitos alfarrabistas que devem existir na sua terra um exemplar de “Bem Escrever Bem Dizer”, de Edite Estrela, e ameace, ou, melhor, prometa ir lendo partes ao seu neto, caso ele não coma o solene cozido à portuguesa, o alegre bacalhau à espanhola, a deliciosa farinha de pau ou a revigorante sopa de nabos que a senhora lhe quer dar. Já agora, se por acaso a autora do livro advogar que o plural de social-democrata é “social-democratas”, diga ao seu neto que o Prof. Rebelo Gonçalves tem uma nota no seu “Vocabulário” que diz que o plural é sociais-democratas. Mas veja bem que, com tal método de abertura de apetite, tão certo como a senhora conseguir libertar o seu neto das garras da obesidade infantil será eu perder para todo o sempre um futuro correligionário da investigação gramatical, ortográfica, fonética, prosódica. Duro dilema.

De M. do Amparo Catita, de Pereiro de Palhacana, concelho de Alenquer: “Tenho 31.540 amigos no Facebook mas só conheço três, incluindo a Serralharia Santos. Um deles em boa hora me passou um texto em que o Sr. falava da floresta e da madeira de uma forma que me tocou tanto como as entrevistas daquele rapaz da SIC que põe os entrevistados todos a chorar (acho que é o Carlos Daniel). Aquela parte em que diz que a floresta tem palavras que são só dali e não diz quais são é o ponto mais forte da sua redacção. Se se pusesse a dar exemplos, teria estragado tudo, porque não iria acertar com o que eu sou capaz de ver numa floresta ou num bosque (palavra que lhe falhou). Assim, acertou completamente. Por que não fala de animais e plantas que lhe mereçam menção especial? Encaixaria perfeitamente no tom e viria ao encontro de muitos corações ávidos de natureza. Bem haja.”

Obrigado. Tentarei ir por onde sugere. Não falei em bosque, é verdade, mas um leitor falou no Robin dos Bosques. Achei que bastaria. Pelos vistos, não. E acho que confundiu o Daniel Oliveira com o Carlos Daniel.

Sugerir correcção
Comentar