Só lhe posso dar uma rubrica

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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Não foi, verdadeiramente, ter de me debater com o abrir os olhos às horas da madrugada a que os pássaros diligentes procuram e conseguem as melhores minhocas e enfrentar o frio e a neblina de uma manhã feita para se passar na cama, nem de descobrir um lugar vago junto à clínica em terreno inclinado, para o caso de o carro não pegar a seguir à consulta anual de medicina do trabalho para a qual tinha sido convocado, não foi a total incompreensão pela organização deste tipo de expedição no pino do Inverno em vez de na Primavera, não foi sequer a falta de electricidade na sala de espera onde me preparava para atacar a edição criminosa do livro do Camilo que trazia no bolso, com anotações de um pretenso cómico com a intenção de fazer rir e o resultado de se retalhar um clássico de um dos nossos maiores deuses literários, edição que eu só tinha comprado porque era ridiculamente barata e porque cabia no bolso. Não foi porque tive de me sentar, na sala de espera, no lugar mais próximo de uma porta que servia de janela, para ter luz suficiente para alumiar o Camilo, não foi porque, saindo da penumbra de quem se sentava indiferente à falta de luz, uma face crispada e acusadora contraditava a generosidade com que expunha umas pernas bem feitas, não deixando estudá-las com o critério e a dedicação que mereciam, sob pena de fuzilamento sumário.

Também não foi a temperatura da sala do electrocardiograma que não convidava a tirar a camisola, muito menos a camisa, antes de me deitar numa marquesa (“que já não sabia a idade”) para me sujeitar aos avanços de uma menina técnica que, de roupa completa e bata e cachecol bem enrolado, insistia em vir na minha direcção com um emaranhado de cabos eléctricos com umas peças metálicas enormes que se pareciam com aqueles parafusos gigantes que apertam as rodas de raios das donas-elviras (deuses de Olimpo: por que se minimizam os dicionários ilustrados?). Não. A menina foi muito simpática e atenciosa e depois de me aplicar aquelas dúzias de ferragens geladas ao longo de todo o corpo (salvo seja) que tentou reiteradamente que se me aderissem através do método de sucção, ainda me encontrou parecenças com o Michael Phelps, devido aos círculos vermelhos com que fiquei marcado na pele após a operação daquele polvo metálico. À terceira vez – porque o polvo adormecia e ia largando, alternadamente, uma e outra ventosa que era preciso recolocar – o electrocardiograma estava feito, e a amorosa menina técnica, acompanhando-me, ajudou-me a vencer aquele dédalo catacumbático e nebuloso que conduzia – diziam os iniciados – à recepção.

Não, não, tudo normal. Foi na recepção, aonde cheguei um tudo-nada desidratado, que o caldo entornou, que o copo transbordou, que o camelo arriou, quando, rematando um formidável malabarismo de papelada, a funcionária me faz a pergunta fatídica: “Não se importa de me dar uma rúbrica?”.

Eu, seguidor de “Sê o primeiro a ouvir e o último a falar”, gelei, fiquei pregado ao chão, tal como quando tentamos encontrar o nosso lugar num cinema de agora, caminhando sobre um piso onde um cinéfilo entusiasta entornou um copo de dois litros de Coca-Cola clássica duas sessões antes da nossa. Eu, que gosto tanto de dar que os meus amigos me chamam “o Dador” (outros, mais perspicazes, chamam-me “o da dor”), e que, nos tempos da mocidade, cheguei a dar a minha camisa a uma senhora tailandesa que ficava feliz por fazer massagens, fiquei lançado no desespero de, a um tempo, não saber corresponder ao que me era solicitado e de não querer ser desagradável.

Quando já não podia adiar mais a resposta e a combinação de cores do meu rosto poderia sugerir a iminência da apoplexia, tive de render-me à realidade brutal, articulando com um fiozinho de voz apropriado à mágoa da desilusão: “Desculpe, menina, mas importo-me, sim. Importo-me até bastante, já que me pede o impossível!...” Aparentemente perplexa por ter de lidar com casos como o meu numa clínica sem a especialidade de psiquiatria, apressou-se a alterar o pedido: “Pronto, pronto, não se preocupe, se lhe facilita, pode ser uma assinatura...”

É claro que, por esta altura, já o episódio tinha atraído ao balcão quer todos os reforços disponíveis da sua gente (salários mínimos “a recibos verdes”, incluindo enfermeiros e médicos), quer de toda a maneira de basbaques. Constituída assim espontaneamente uma turba benigna que me pareceu ávida de enriquecimento cultural em geral, fiz um gesto largo com a mão direita e esclareci: “Bom povo: pediu-me ainda agora, esta menina, que lhe desse uma ‘rúbrica’. Não sei dizer se a minha aflição foi maior por não lhe poder valer do que por ouvir uma palavra nossa ser destratada com uma acentuação que não é dela. Diga-se ‘rubrica’, a rimar com ‘barrica’, pois só assim respeitamos a nossa língua e os ouvidos alheios...”

“Mas se a rapariga não queria um programa de rádio, mas uma assinatura abreviada, por que iria ela pedir uma ‘rubrica’ a rimar com ‘barrica’, com seiscentas pipas?...”, perguntou um vilão rufião. Ao que me vi forçado a responder: “Porque quer seja um programa da Rádio Nova, quer seja uma assinatura abreviada, a palavra é uma e uma só: ‘rubrica’, a rimar com ‘barrica’!

O descontentamento que deflagrou – e que fazia lembrar o que se seguiu ao momento em que se soube que a Caixa Geral de Depósitos vai apresentar um prejuízo de três mil milhões de euros – encaminhava a turba para aquele estádio seguinte em que se transforma em multa, em turbamulta. Dando um salto nada inferior ao de qualquer herói da Marvel, achei-me de pé em cima do balcão, de onde subjuguei a cabeça colectiva imaginária daquele ajuntamento tirando o “Dicionário Prático Ilustrado”, dos Editores Lello & Irmão (Porto, 1986), do bolso do meu sobretudo e lendo (pág. 1059): “Rubrica, s.f. (latim rubrica, terra vermelha). Terra vermelha que se empregava outrora para estancar o sangue. Almagre empregado pelos carpinteiros para traçar linhas nas peças de madeira. Título dos capítulos de direito canónico e civil, que outrora era impresso a cor vermelha. Nota, segundo a qual se devem celebrar os ofícios divinos, e que em geral é escrita em letra vermelha, nos breviários, missais, etc. Preceito incluído nessa nota. Teatro: sinal indicativo dos movimentos e gestos dos actores, consignado nos respectivos papéis. Por extensão: cada assunto de um programa radiofónico. Nota. Assinatura em breve. (É erro dizer ou escrever rúbrica).”

Depois de um “ah!” uníssono de incredulidade, todos quiseram ver, pelos seus olhos são-tomenses que não da ilha, se estava mesmo ali escrito o comentário entre parêntesis sobre o erro e, uma vez que o confirmaram a contento, arrastaram-me com eles, entre vivas e pagamentos e recebimentos de apostas, até ao café mais próximo, onde os festejos atingiram alturas de convocatória de um dos raros carros-patrulha funcionais da PSP, cujos tripulantes foram rapidamente absorvidos pela referida turba, que acabou por receber multa, em forma tentada, por falta de licença para organização de manifestação na via pública. Umas crianças grandes, genericamente falando, mas uns ouvintes “de bom tempo” que me deixaram sair apoteoticamente do meu ousado uso de um dicionário em público. Por façanhas similares, diz-se, há quem saia de determinadas escolas com as vestes em tiras e os nervos em franja. E alguns desses professores não o merecem. Aconselho-os a fazerem uso e porte de edições abreviadas apenas, para aligeirar o risco do arremesso da devolução por parte de algum discípulo enfartado de cultura.

Correio premente

(Nota: devido a não termos recebido do autor, a tempo do arranque da rotativa, o conteúdo desta sub-rubrica, a rimar com barrica, não nos será possível publicá-lo esta semana. A responsabilidade é exclusivamente do autor. Nós não temos nada a ver com isso. Não vale a pena enviar e-mails)

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