Devolvam-nos as nossas crianças

Não imagino o que é ser-se criança hoje em dia. São reféns do que acontece no mundo dos adultos. Bombardeadas com informação, propaganda, notícias, conversas de café, almoços de família, rixas na rua e absorvem tudo. E, no final, quem é que faz a reparação dos danos causados?

Foto
mojzagrebinfo/Pixabay

Eram 8 horas da manhã. A minha filha de 7 anos acordou em sobressalto. “França está em guerra!” Tentei acalmá-la e perceber o que a apoquentava. Ela continuou. “França está em guerra, a Manon está quase a ir de férias e vai ver mortos!” E vi o pânico nos seus olhos molhados.

Ainda estávamos de estômago vazio, caras sujas, ar ensonado e pijamas amarrotados. Ele há pessoas assim, que despertam a mil, disparam pensamentos e dos certeiros, e cuidado, salve-se quem puder. Àquela hora, por mais treino que uma mãe ou pai tenha, a nossa guarda está em baixo. Estamos preparados para dar mimos, temos uma mão meio-cheia de raspanetes, pois todos sabemos que de manhã andamos sempre à pressa. Mas… tentar explicar que um país não está em guerra, porém vive sob um estado de alerta como se estivesse em guerra? Ora, nesta dita manhã, o tempo congelou. Fui atingida. “França está em guerra!” E é preciso proteger a Manon.

As perguntas não pararam. Ela ainda se recordava dos ataques de 13 de Novembro. Expliquei-lhe que os corpos eram enterrados, foram feitas cerimónias, homenagens. Receou que tivessem existido greves de coveiros e que alguns corpos tivessem ficado por enterrar. Voltámos a falar dos ataques, da diferença entre estes e uma guerra. Falou-me dos refugiados. Quando saímos de casa, disse: “Não está ninguém a dormir à nossa porta.” Aparentemente, tem estado à espera que cheguem. Queria saber como vinham, quais os pontos de chegada, as suas histórias de vida. Falei de situações de reagrupamento familiar, de famílias separadas que pretendem ficar juntas. Começou a pensar em vários cenários. “E se forem dois irmãos, são uma família? E um tio e uma sobrinha?“ Por momentos, voltou aos ensinamentos tradicionais e deu um cão a todas as famílias que imaginou… E todas as casas passaram a ter de ser grandes! ENORMES.

Passaram-se 50 minutos desde o toque da alvorada. Chegada à escola, vê o Kartik, o Kismat, a Cristina, a Mariana, a Inês… Ainda não há sinais da Manon. Antes de subir as escadarias principais que dão acesso ao edifício da escola, diz-me: “Mamã, mais longe. Então? Eu consigo ir sozinha.” Eu sei que ela consegue. Mas eu não consigo. O mundo diz-me para aproveitar todos os segundos da vida dela. Porque todos os dias eu dou o meu melhor, mas parece que não chega. O mundo está em guerra. Está?

Não imagino o que é ser-se criança hoje em dia. São reféns do que acontece no mundo dos adultos. Bombardeadas com informação, propaganda, notícias, conversas de café, almoços de família, rixas na rua e absorvem tudo. E, no final, quem é que faz a reparação dos danos causados? A idade dos porquês nunca mais será a mesma coisa. 

Juntou-se uma farta cabeleira loira ao resto das crianças. Sotaque francês. São 09h10 da manhã. Haja um pouco de paz.

Sugerir correcção
Comentar