Tenho pena do Raul

Quem ajuda e procura ajudar, fá-lo em casa como o faz lá fora por uma questão de respeito profundo para com o outro, seja o outro quem for, português ou estrangeiro

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Yuriko Nakao/Reuters

Tenho pena do Raul. Tenho pena do Raul, mas mais do que isso, tenho pena de todos os "Rauis" deste Portugal e deste mundo, sem abrigo, sem futuro, sem esperança, e por isso trabalho a título gratuito, escrevo a título gratuito, ensino a título gratuito e trabalho as horas extra que hão-de desaguar num emprego, numa vida e num brilho no olhar onde antes não havia sequer nada para olhar, ver ou palpar. E por isso tenha pena do Raul, para que num futuro não muito distante não haja mais "Rauis" por que penar.

Mas, mais que isso, tenho pena dos ignorantes que acham que quem procura ajudar todos os "Rauis" hoje a atravessar a Europa com os mesmos pés, apenas o faz por uma questão de vaidade pessoal, “que é para aparecer no Twitter“, “porque é bem e eu sei lá“, e “coitados dos refugiados, que giros que eles são“, mais as "selfies" tiradas nas "Croácias" e nas "Hungrias" enquanto se atravessam fronteiras e as vidas cruzam destinos e sortes.

Não. Quem ajuda e procura ajudar, fá-lo em casa como o faz lá fora por uma questão de respeito profundo para com o outro, seja o outro quem for, português ou estrangeiro, porque pessoa, com um coração, uma cabeça e um corpo predispostos a lutar, predispostos a amar, sendo que na sua acção agradece os incentivos, mas nem por isso os argumentos parvos através dos quais se enterra a cabeça na areia e se faz de conta que o que se passa lá fora não terá qualquer reflexo em tudo quanto nos rodeia e está mais próximo.

Entendamo-nos portanto, porque se hoje em dia ajudamos esses "Rauis" que correm a Europa, e se hoje em dia chamamos a atenção e os olhos do mundo no seu sentido, fazemo-lo na ideia de que ao voltar para casa outros tenham seguido o nosso exemplo ajudando todos os "Rauis" que nos batem à porta e se atravessam nos passeios, nos bancos de jardim, nas ruas, nas avenidas e nas cidades.

Não queiram portanto denegrir a vontade de quem vai, literalmente, mais além à procura de quem nos estende o braço do lado de lá das fronteiras, dos muros e arames farpados, à procura das crianças que se perdem para a prostituição e violação, à procura das mães à espera dos maridos e dos filhos deixados nos mares e cemitérios de outras margens, de outras terras, de outras vidas, outros passados, outros horrores, outras mortes, mais mortes, as atrocidades e o ódio, cego, sem motivo ou razão, apenas ódio de espada desembainhada, decepando membros e cabeças, executando, queimando, desmembrando nações, civilizações, porque hoje são eles e amanhã somos nós, e se porventura ajudamos, não é por certo para aparecer, mas para viver, para sobreviver a esta guerra que nos acomete, mais uma, porque sim, porque certos homens são mesmo assim, mas quem estende a mão não, nem por isso, e nem por isso. E por isso não nos julguem, não nos menosprezem nem desdenham, não nos amesquinhem e, no fundo, não sejam burros, porque se corremos países numa corrida contra o tempo, apenas o fazemos para vos salvarmos de vós próprios mais essa ignorância mortal, e pelo andar da carroça não me parece que sejamos bem sucedidos. Por tal, e como dizia o outro, já que não nos querem ajudar, “Por qué no te callas?“.

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