Um pequeno ponto azul

A Terra é, até hoje, o único mundo capaz de conter e criar vida. E olhando em redor não há qualquer outro lar, qualquer outra terra, para onde a nossa espécie possa olhar, estender os braços e migrar à procura de outra vida que não esta

Foto
Scott Kelly/NASA/Reuters

Numa altura em que, em Portugal, Direita e Esquerda se envolvem numa luta facínora, cruel, sem quartel nem prisioneiros mas apenas sangue e calva, muito calva bebido do crânio dos vencidos, não posso deixar de ouvir, mais uma vez, e desta feita tomar a liberdade de traduzir, o eterno discurso de Carl Sagan, proferido em Mil Novecentos e Noventa e Quatro a partir de uma curiosa, e única, fotografia da Terra tirada pela sonda Voyager 1 a mais de seis mil e quatrocentos milhões de quilómetros de distância: “Estando tão longe de tudo e de nós a Terra pode não parecer nada de especial, apenas um pequeno ponto azul perdido no espaço.

No entanto, basta-nos olhar com um pouco mais de atenção para perceber o contrário: este pequeno ponto azul somos nós, aqui e neste momento, é a nossa casa, o nosso lar, a nossa própria, única e singular, Terra. Aqui viveram todos quantos tivemos a sorte de conhecer, todos a quantos tivemos a sorte de amar, todos as pessoas de quem ouvimos falar e todos os homens e mulheres que alguma vez existiram.

Aqui, neste pequeno ponto azul, encontrámos toda a nossa felicidade e sofremos todo o nosso sofrimento nas milhares de religiões, crenças, ideologias e doutrinas. E aqui todos os caçadores e todas as presas, todos os heróis que lutaram mais os cobardes que fugiram, todos quantos ergueram civilizações inteiras mais os que as arrasaram, todos os Reis e servos, todos os casais apaixonados e de mão dada, todas as mães e todos os pais (ainda a olhar para nós), todas as crianças e a esperança num futuro, todos os inventores e descobridores, todos os moralistas e políticos corruptos, todas as estrelas no firmamento, todos os ditadores, todos os santos e todos os que um dia pecaram em nome da nossa espécie, viveram e morreram as suas vidas, num grão de pó perdido algures no espaço e suspenso na ponta de um raio de Sol.

Porque para quem nos olhe de tão longe, a Terra nunca passará de um pequeno palco numa imensa arena cósmica. E assim sendo, debrucemo-nos sobre todos os rios de sangue alguma vez derramados em nome de todos os Generais e Imperadores, em nome de todos os autoproclamados Senhores de uma Fracção de um Grão de Pó... e debrucemo-nos sobre todas as atrocidades cometidas sem dó nem piedade pelos habitantes de uma metade desta migalha de pão sobre os minúsculos habitantes da outra metade, e como sempre se desentenderam, como sempre se predispuseram a exterminar-se uns aos outros, e como sempre se odiaram sem nunca se verem a si próprios, aqui de tão longe... No fim, a nossa altivez e a nossa arrogância, toda a presunção de que somos, de facto, importantes diante de Deus e dos homens, é deitada por terra diante de um pequeno ponto azul, perdido algures num espaço a perder de vista e onde não mora qualquer esperança de que um dia algo, ou alguém, venha para nos salvar de nós próprios.

A Terra é, até hoje, o único mundo capaz de conter e criar vida. E olhando em redor não há qualquer outro lar, qualquer outra terra, para onde a nossa espécie possa olhar, estender os braços e migrar à procura de outra vida que não esta. Diz-se da Astronomia ser a mesma uma prova de humildade e aprendizagem para quem a viva. De facto, e olhando para esta imagem deste nosso pequeno mundo, não podia estar mais de acordo, a qual sublinha toda a necessidade premente de cuidar, no verdadeiro sentido da palavra, deste pequeno ponto azul, o único lar que alguma vez conhecemos.“ Carl Sagan, "Pale blue dot", 1994.

E já que estamos numa de citações, deixem-me terminar com Jack Nicholson, o qual, momentos antes de morrer às mãos de um Marciano em “Marte ataca!“, de Tim Burton, se saiu com o sempre saudoso: “Why can’t we just get along?“

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