E às vezes chuvisca

Afivelo botas, boné e casaco de cabedal e passeio lento à chuvinha que faz correr os lisboetas como dianhos à água benta, já cheira a Inverno, belo!

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kygp/Flickr

Sento-me para escrever mas não acontece nada, deito-me no sofá de lado e empino o teclado, bebo aguardente de cana que alguma alma caridosa me trouxe de Cabo Verde (que eu só conheço as ilhas do sabor da cachupa da Dona Aldina), olho para vocês através do branco do écran.

Não nos chateio com política, está tudo pelos olhinhos com a campanha e as negociações e o Aníbal e o Marcelo e o risível facto de haver gente que leva a candidatura da Maria de Belém a sério (vá, chamem-me lá misógino que eu tenho aqui um dedo à vossa espera), mais um tiroteio americano, um naufrágio à beira da praia, o monte de esposas e namoradas assassinadas que continua a sublinhar os nossos brandíssimos costumes, o Putin a atacar o (autoproclamado) estado islâmico com uma inacreditável falta de pontaria, os 4 milhões de refugiados que devem ter tido a situação resolvida porque desapareceram das notícias, e a malta só fala é da "gaffe" (propositada ou não) do Topo Gigio da RTP.

A garota faz umas birras operáticas para não ir para a cama e para não sair dela, para vestir só o que lhe apetece e não tomar o xarope da otite mas lixa-se sempre na frente comum dos velhos, só a gata é que se deixa impressionar pelo talento para as artes performativas. O meu avô vai lentamente enchendo e desinchando à medida que as batas brancas experimentam coisas, guardando só o ar quieto e a tez de vela seca e quebradiça qual folha de Outono: sério e céreo, cada vez que rabuja é a alegria da gente.

Eu escrevo aulas (à mão e em letra grande para as poder espreitar de pé), alinho "powerpoints", faço manuais e preparo testes, experimento marcadores de quadro até um ceder tinta, "tiro dúvidas" no corredor, rearrumo grupos de trabalho que alguma trica adolescente escangalhou, como a sopa (à base de batata) da cantina, aponto para os "phones" quando não estou para os aturar no pátio, troco histórias de calinadas estudantis na sala dos professores, dou-lhes com as folhas na cabeça para lhes calar o burburinho na sala, fico contente comigo mesmo quando um me diz que foi ver “O Padrinho” por eu ter falado nele, sorrio interiormente do facto das horas que me pagam serem as que menos trabalho me dão.

Ando a passos largos para apanhar o 754 “a gentleman will walk but never run”, deixo a gata provar dos excelentes salgados do meu café, vou a Letras botar faladura e conheço um encantador "gang" de historiadoras de arte especializadas em azulejo, tudo tão meio a correr que nem tenho tempo de dar um beijo no busto do Leite de Vasconcelos como fazia sempre quando era jovem e inconsciente, adio outra vez as respostas às cartas dos meus amigos (é incrível o que os gajos me aturam), janto num chinês ilegal na Mouraria e como um tipo de massa de arroz que nunca tinha visto antes, gasto um valente pedaço de tempo a escolher a música que acompanhará o texto (à esquerda, por cima do excerto) consciente que, como de costume, passará despercebida à maior parte dos leitores.

Fumo à janela para não envenenar a família e molho os cotovelos do roupão, desligo a televisão logo que aparecem os anúncios dos fungos das unhas ou a cara do Martim Cabral, danço com a criança rock pesado para horror dos gatos e da mãezinha, desembrulho a cachaça de Minas (natural, ecológica, artesanal) que a tia Isabel mandou (bendita!), afivelo botas, boné e casaco de cabedal e passeio lento à chuvinha que faz correr os lisboetas como dianhos à água benta, já cheira a Inverno, belo!

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