A história de Semhar, a aluna refugiada em Londres

Semhar nunca teve vida alguma, pelo menos na Eritreia onde, numa noite de 2009, fugiu ao exército que a queria recrutar para uma guerra que não era a sua

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Há seis anos, quando ainda ninguém falava de refugiados e milhares de pessoas não atravessavam todos os dias o Egeu e o Mediterrâneo à procura dos braços de Yemanjá, já nós vivíamos a realidade dos mesmos, fugidos à guerra, à fome, às violações e à morte certa, à procura de uma outra vida e um outro mundo no mesmo Reino Unido que hoje, tão veementemente, os rejeita.

Minto, eu não vivi nada, mas a Ana viveu quando, em dois mil e nove, encontrou na sua sala de aula a Semhar, fugida da guerra na Eritreia, sabe lá Deus como. E se a Semhar não balbuciava uma palavra de Inglês, a Ana também pouco sabia de Tigrinya ou árabe, mas como professora de Inglês para alunos com necessidades educativas, acharam as chefias da escola ser a minha mulher, Portuguesa de profissão e paciente quanto baste, a escolha ideal para ensinar uma menina da Eritreia, órfã da vida que um dia tinha sido sua.

Minto, outra vez, porque a Semhar nunca teve vida alguma, pelo menos na Eritreia onde, numa noite de dois mil e nove fugiu ao exército que a queria recrutar para uma guerra que não era a sua. Fugiu, a mando da mãe e da tia, apenas com a roupa que tinha no corpo mais a memória da família deixada para trás, a qual, de certeza, não voltaria a ver.

Nessa noite foi a Semhar levada para uma bomba de gasolina aonde também foi ter um rapaz, futuro menino-soldado, agora desertor e com a cabeça a prémio. Escondidos numa carrinha, foram os dois levados para a Arábia Saudita, de onde apanharam um avião para a França e a Europa prometida, sempre acompanhados por um homem “que tratou de todos os papéis".

Daí para o Reino Unido e para a sala de aula da Ana foi um pulo, e se hoje podemos contar esta história é porque a Semhar aprendeu, de facto, o Inglês para poder narrar os horrores das guerras sem sentido, como aliás são sem sentido todas as guerras, onde as pessoas se matam apenas por matar.

Com a ajuda da minha mulher não só terminou o Ensino Secundário como ainda teve tempo para fazer uns bonitos "powerpoints" do nosso casamento, ao melhor estilo Eritreu (e "kitsch", se vocês vissem percebiam, mas a intenção é que conta e a gratidão eterna). E não, não mais soube da família, pelo menos até dois mil e doze quando, através do Facebook (bendito Santo Zuckerberg) deu de caras com os dois irmãos e a mãe na Suíça!

E assim, três anos depois, a guerra da Semhar chegava ao fim no abraço dado à mãe e nos beijos com que cobriu os irmãos lavados em lágrimas. E apesar de terminado os estudos, nunca deixou de entrar em contacto com a Ana, que um dia foi a sua professora e hoje é uma amiga para a vida.

No passado mês de Julho fomos os dois ao casamento da Semhar. Não sei muito bem como descrever um casamento tão Eritreu como Ortodoxo, mas se vos disser termos sido os únicos não Eritreus naquela sala vestida de gente do deserto com longos cabelos entrançados e belas túnicas brancas, e se a isto acrescentar termos sido tratados como irmãos, por aqui posso dizer como um dia uma menina fugiu à guerra na Eritreia para que a Eritreia nunca mais voltasse à guerra. Aqui em Londres, por certo, não voltará, e pela noite dentro nós, os Eritreus, cantámos como irmãos as alegrias de quem, finalmente, voltou a casa.

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