Para a Europa se salvar a si mesma terá de salvar os refugiados

O que a história vai lembrar, e os que os nossos filhos e netos vão lembrar ao olhar para nós, é que um mar de gente bateu suplicante às nossas portas e que as ignorámos

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Laszlo Balogh/Reuters

A história não nos vai julgar com brandura. Não vai atender ao facto de estar em crise, de termos elevado desemprego, ou pobres com fome nas ruas. Para os nossos netos, pouco vai importar se uns eram cristãos e outros muçulmanos, uns europeus e outros árabes, uns portugueses e outros sírios. Para os nossos filhos, parecerá hipócrita a ideia que “nós” podemos aspirar a uma vida confortável porque nascemos em Portugal, mas “eles” não, porque nasceram do lado errado do mar, do lado errado dos muros. O que a história vai lembrar, e o que os nossos filhos e netos vão lembrar ao olhar para nós, é que um mar de gente bateu suplicante às nossas portas e que as ignorámos. Pessoas que deram tudo o que tinham pela oportunidade de uma vida com algum conforto e paz; e que, mesmo assim, tudo o que tinham, não foi suficiente para que as achássemos dignas de entrar nas nossas fronteiras.

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, disse que será o fim da Europa se esta acolher os refugiados. Creio que se a Europa não os acolher será a prova de que já acabou. De que já foram substituídos os valores de liberdade, fraternidade e igualdade sobre os quais a Europa contemporânea foi construída; de que foi revogado o compromisso da Europa para com os direitos humanos; de que a Europa se demitiu de respeitar a dignidade da pessoa humana. Será que morreu a Europa e não nos demos conta?

Para a Europa se salvar, tem de continuar a defender estes valores. Ser Europeu não é nascer entre o Atlântico e os Urais, nem nos vem algures nos genes. É sentirmo-nos unidos por valores partilhados à história e ao futuro de um continente e dos povos que nele habitam. E não interessa que os refugiados não partilham inteiramente desses valores ou dessa história, ou mesmo que se oponham a eles. A força dos valores da Europa mede-se também pela tolerância que temos para com aqueles que discordam de nós e pela capacidade que temos para integrar pessoas com ideias distintas. Claro que todos temos de respeitar as mesmas leis, porém a mera diferença de opinião e de costumes não é ofensa a nenhuma lei mas o exercício da liberdade que a lei confere.

Não, a história não nos vai julgar com brandura. Mas será que nós mesmos nos conseguiremos um dia julgar com brandura? Olhar para trás e perceber que ficámos do lado certo dos muros mas do lado errado da história?

No livro “A Queda”, de Albert Camus, um advogado honesto vê uma rapariga na borda de uma ponte à noite. Ele acha estranho, mas passa por ela sem dizer nada. Ouve depois o som de um corpo a cair na água. Ele sabe o que aconteceu, ouve os gritos dela a afastarem-se rio abaixo, mas nem se vira, em parte pelo medo de colocar a sua vida em risco. Consegue inicialmente convencer-se de que não havia nada a fazer – e a culpa afinal não era sua. Anos mais tarde, ao passar pela mesma ponte depois de um bom dia de trabalho e de um bom serão com os amigos, invade-o uma sensação de profunda e genuína satisfação, de que era a pessoa que queria ser. Mas estava a acender um cigarro auto-congratulatório, quando ouve uma sonora gargalhada, quase de gozo. Claro que não era a rapariga, devia ser alguém que estava a ter uma outra conversa, mas ele deixa então de conseguir reconciliar a ideia que tinha de ele próprio como um homem de valores e princípios com a ideia de que não tinha sequer tentado salvar a rapariga.

Do mesmo modo, não é possível continuar a dizer que reconhecemos a dignidade da pessoa humana mas não darmos um tratamento humano a estas pessoas; que somos uma povo solidário mas que pergunta qual é o passaporte que cada um tem no bolso antes de ajudar seja quem for; e a escandalizarmo-nos com as violações dos direitos humanos nos conflitos do Médio Oriente enquanto recusamos a entrada aos que fogem deles.

A imagem do papel das invasões bárbaras no queda do Império Romano tornou-nos céticos a aceitar pessoas que vemos como bárbaras. Mas estes refugiados não são bárbaros, são frequentemente pessoas com formação. São, por regra, jovens, determinados, empreendedores. Não vêm tirar o nosso emprego, vêm muitas vezes criar empregos, não só porque são também consumidores de bens e serviços que nós produzimos, mas sobretudo porque tendem a criar os seus próprios negócios oferecendo-nos produtos e serviços de que gostamos. (Quero comer no primeiro restaurante sírio a abrir em Portugal).

Ao redor do mundo os imigrantes criam entre cerca de duas até quatro vezes mais negócios per capita que os nacionais, praticam menos crimes per capita, têm uma taxa de desemprego menor e uma probabilidade menor de recorrer a subsídios. Mais importante: são contribuintes líquidos para a segurança social, o que é fundamental para um país como Portugal, cuja demografia coloca em risco as pensões, reformas e subsídios de todos nós. Por isso, em vez de dizer que devíamos atender aos nossos desempregados e reformados primeiro, temos de ver que os seus subsídios provavelmente vão ser pagos em parte com dinheiro e o trabalho dos imigrantes, se não o são já.

O livro de Camus acaba com a personagem principal a dizer uma frase que o persegue noite após noite: "Rapariga, atira-te outra vez à água para que eu possa salvar-nos aos dois”. Era tarde de mais para ele, é já tarde para milhares de refugiados, mas pode ser que ainda estejamos a tempo de salvar a Europa e nos salvarmos a nós. Todos nós.

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