Ainda bem que vimos uma criança morta

Mais que nunca, é importante aprender esta lição: o tema dos refugiados entrou na agenda mediática como nunca antes, e ainda bem. Por causa de um miúdo. Pobre, aterrorizado, desesperado. Um miúdo morto. Salvemos os que restam

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Osman Orsal/Reuters

Ninguém a queria ver, mas toda a gente a viu. E ainda bem. Não porque seja um prazer — longe disso! —, mas por ser um mal necessário. As mortes dos refugiados que procuram portos seguros na Europa acontecem há meses, anos. Por isso é que digo: ainda bem que vimos uma criança morta. A verdade é que todos somos hipócritas — voluntária ou invuntariamente, somo-lo e não o podemos negar. Se não fosse aquela fotografia arrepiante, crua e que nos faz sentir repulsa pela Humanidade de que fazemos parte, ainda hoje estaríamos adormecidos face à magnitude de mais um problema humanitário com que o mundo ocidental se depara.

Não podemos trazer Aylan Kurdi, de três anos, de volta à vida. O menino sírio que deu à costa numa praia turca tornou-se mundialmente famoso por causa da fotografia de Nilüfer Demir, tornando-se num ícone da luta trágica dos refugiados sírios que procuram a sobrevivência na Europa pacífica. (Já agora, uma nota à imprensa: não são migrantes. São refugiados, são pessoas que batalham para não morrer às mãos da guerra.) A fotografia foi publicada, e ainda bem. Chegou aos jornais, que se apressaram a explicar a razão pela qual a mostravam, e massificou-se nas redes sociais.

De seguida, a malfadada imagem reuniu as habituais críticas. Diogo Faro foi um desses críticos, ironizando com a partilha de fotos deste género no Facebook, acabando por não ter a visão suficiente para compreender o alcance de uma partilha massiva de imagens desta índole. Mesmo que pouco mais se faça além de se partilhar uma foto, o ruído por ela causado já é uma ajuda louvável. Muitos de nós não têm possibilidades, financeiras e não só, de ajudar o próximo, por muito que o quisessem. Por isso, fazem-no — e bem — criando "buzz" sobre o assunto. Os eventos seguintes, como se viu, calaram os críticos.

Uma vez que vivemos na era da aparência, as empresas e instituições vivem disso, portanto acabam por ver-se forçadas a oferecer ajuda a troco de uma imagem (bastante) positiva junto do público – mesmo que, muitas das vezes, o façam como mera publicidade encapotada, mas antes encapotada que enganosa. Cedo à enumeração: David Cameron assumiu de imediato que o Reino Unidos aceitará receber mais refugiados, Áustria e Alemanha abriram as portas para albergar os que fogem à xenofobia húngara, a Comissão Europeia fez um apelo para se receberem mais 120 mil refugiados, a Seleção Nacional fez um apelo sentido à causa, o FC Porto propôs à UEFA que os clubes participantes da Liga dos Campeões fizessem um donativo significativo na primeira jornada da prova, Bayern Munique e Real Madrid ofereceram um milhão de euros para criar campos de acolhimento, os media nacionais desdobraram-se em notícias explicativas para auxiliar estas pessoas em desespero e um bilionário egípcio já se ofereceu para comprar uma ilha grega ou italiana para acolher alguns milhares de pessoas. Rui Marques, reconhecido activista humanitário português, lançou até uma plataforma de ajuda aos refugiados, em refugiados.pt.

Não obstante, eventos desta magnitude provocam sempre ideias incrivelmente disparatadas a totós que por aí andam, como a da instituição oficiosa autodenominada Conselho Português de Protecção Civil (que, atenção!, nada tem a ver com a Protecção Civil), aconselhando os pais a ensinar os seus filhos a nadar, e a de António Costa, que nos proporcionou mais um espirituoso momento de galhofa com outro certeiro tiro no pé: bonito, bonito era trazer os refugiados para Portugal e pô-los a limpar florestas. Era, Costa. Era isso e pôr a Juventude Socialista inteira, de borla, num "call-center" durante 15 horas por dia, e depois deixar a malta ir lá apreciar a fauna, tipo aquário no Oceanário. Que tal? Juízo, pá!

Em contra-corrente, damos um pontapé numa pedra e saem de baixo dela dez pseudo-justiceiros, bradando aos céus sobre a injustiça que é ajudar os outros antes de dar comida e albergue aos nossos compatriotas. também foi preciso aparecer um puto morto numa praia para nos lembrarmos dos nossos sem-abrigo, ao que parece. ao mesmo tempo, há virgens ofendidas que lançam o repto do apocalipse, garantindo que a chegada de refugiados vai dar cabo da nossa cultura e da (irrelevante) religião. Quando vejo isto, só me lembro de Breivik, o tresloucado que chacinou dezenas de noruegueses como meio de alerta para os perigos do multiculturalismo. Temos terroristas destes no meio de nós, aparentemente. (Não acreditam? Então vejam este post da One Woman Show.) Lamento, mas nisto não há regra: cada um ajuda quem quer e quem pode. Em casos destes não há – não pode haver! – nacionalidades, credos, convicções. O bicho humano é um e um só – e quem fizer distinções deixa-se cair no espectro da xenofobia. Como li algures por essa internet, “temos de perceber que ninguém coloca o seu filho num barco a menos que a água seja mais segura que a terra”.

Contudo, já sabemos como são estas coisas. As causas de hoje são os esquecimentos de amanhã. Já ninguém se lembra do Charlie nem do Ice Bucket Challenge. Isto, aliás, até já se nota: neste preciso momento, o que importa mesmo (em Portugal) é que a CMTV entrevistou um entregador de pizzas à porta do Sócrates e já se está tudo marimbando para os refugiados outra vez.

Mais que nunca, é importante aprender esta lição: o tema dos refugiados entrou na agenda mediática como nunca antes, e ainda bem. Por causa de um miúdo. Pobre, aterrorizado, desesperado. Um miúdo morto. Salvemos os que restam.

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