Dar um abraço à morte

"Memento mori”: lembra-te de que vais morrer. Aceitar a morte — a nossa e a dos outros — é o humanismo que nos falta alcançar, para mais tarde defender

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Simon Bellis/Reuters

Entre a infância e adolescência, perdi três colegas da escola primária: Álvaro, Miguel e Alexandre puseram termo à vida, cada um numa ocasião diferente e particular. Nessa altura, parecia-me estranho que as notícias, tão condoídas com os sofrimentos alheios e tão sedentas de tragédias, não mencionassem casos desta natureza. Afinal de contas, os meus três colegas não poderiam ser caso único no país ou no mundo. Anos mais tarde, vim a perceber porquê: suicídios não podem ser noticiados nos media porque causam tendências de mimetismo em quem está numa situação de maior fraqueza ou desespero. Quem vê fazer, quer fazer.

O suicídio é assunto discutido em surdina, nos bastidores, e quem os comete é tratado como louco ou — pior ainda — um pobre coitado. Falta-nos a compaixão de compreender quem opta por pôr termo à sua própria vida. Não quero tomar o lugar de investigadores, psiquiatras e cientistas, mas creio profundamente que o ser humano precisa de mudar a sua relação com a morte. Saber que razões nos vão levar a ela, como tão bem ilustra Alain de Botton. É necessário interiorizar que a morte é, também ela, uma parte inerente da vida. Abraçá-la torna-nos um pouco mais epicuristas, ajuda-nos a apreciar o que temos agora e o que se poderá esfumar dentro de semanas, dias, horas, minutos. “Memento mori”: lembra-te de que vais morrer. Aceitar a morte — a nossa e a dos outros — é o humanismo que nos falta alcançar, para mais tarde defender.

Há pouco mais de uma semana, Gill Pharaoh, uma enfermeira saudável de 75 anos, decidiu deslocar-se a uma clínica suíça para abandonar a sua própria vida, por acreditar que não seria capaz de suportar uma velhice doente. Assim sendo, fê-lo: despediu-se dos seus familiares e abandonou o planeta, em paz, sabe-se lá para onde — se é que foi para lugar algum. Este caso espantou-me, no bom sentido, pela extrema racionalidade e tranquilidade com que o assunto foi tratado. Na prática, Pharaoh optou por estar viva no seu próprio funeral, despedindo-se de entes queridos e aceitando a verdade indelével: o fim estava mais próximo que nunca.

Muitos ficarão escandalizados com esta opção, mas não há razões. O argumento principal é o mesmo utilizado para outras questões rodeadas da mesma polémica: estamos a manipular a nossa natureza e a decidir sobre algo que não deve ser decisão nossa. Errado: estamos constantemente a tomar decisões sobre a natureza que nos define. Curamos doenças, optamos pelo momento certo do nascimento de um ser vivo, seja ele humano ou não, e escolhemos se um feto dará criança ou não. Mas, quando se trata da morte, achamos errado provocá-la porque isso “não é natural”. Esta falácia, directamente provinda do catolicismo e supostamente pró-vida, é contraproducente. Tudo o que não promove a qualidade de vida é anti-vida. Esse, quanto a mim, é o maior argumento que teremos a favor da eutanásia. Podemos tentar providenciar o apoio suficiente mas se, após tratamento, aconselhamento e todos os esforços, a coisa não der resultados, por que motivo insistimos em fazer prevalecer a culpa em quem quer abandonar-nos? Se não os podemos ajudar, pelo menos que lhes ofereçamos paz na hora da partida.

Não sou a favor do suicídio; acho simplesmente que nos faria bem compreendê-lo melhor e aceitá-lo de forma diferente. Desagravando-o, talvez o possamos prevenir mais vezes. Falando dele, talvez o possamos evitar. Este é, definitivamente, um assunto para tratar com pinças. De todo o modo, para quem nele quiser pensar com maior frieza e respeito, sugiro o documentário "The Bridge" e o livro "Um Aprazível Suicídio em Grupo", do escritor finlandês Arto Paasilinna. Enquanto isso, não deixemos os casos de suicídios por explicar, ouçamos quem desespera por gritar e quem, no seu devido direito, não quer connosco partilhar um futuro nesta terra. Ninguém é melhor que ninguém.

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