E se os jornalistas pararem de escrever?

Os jornalistas aguerridos estão em extinção. Aposta-se em painéis onde são os cidadãos a colocar questões aos políticos, a arranjar notícias, a fazer fotos e, se for preciso, a vender jornais

Foto
Angel Arcones/Flickr

Estes não são tempos fáceis para o jornalismo em Portugal. Vivemos numa crise de valores, cedemos à ditadura dos cifrões e não sabemos dar a volta a um modelo de negócio que está moribundo, ligado à máquinas. Disto, resultam jornalistas mansinhos, que se cingem a dar a versão dos que detêm o poder (político e económico) e o povo, pouco instruído para estes assuntos, vai comendo do que lhe é posto no prato. Prato paupérrimo, arroz com batatas sem ponta de proteína.

Felisbela Lopes, com o seu Jornalista: Profissão Ameaçada, e Rui Miguel Lopes, em O Fim da Reportagem, acabam de lançar para a praça pública um tema ultra pertinente, ao qual deveríamos dar maior atenção do que damos: que se lixe a casa do Casillas e todas as temáticas bacocas próprias da silly season. Por uns tempos, é nisto que precisamos de nos focar – o jornalismo em Portugal atravessa uma profunda crise de valores (e não só) que é alheia a quem não conhece os meandros da actividade.

Nesta altura, jornais e telejornais estão pejados de propaganda. Atrevo-me a dizer que mais de oitenta por cento do que é publicado resulta de informações oficiais, raramente havendo espaço para produção própria ou contraditórios. As agências de comunicação dominam as páginas da imprensa e os jornalistas padecem de uma falta de discernimento e pensamento crítico, papagueando chavões em busca do número máximo de cliques. Jornais outrora credíveis apostam em títulos à Buzzfeed para levar o leitor ao engodo. Pior ainda: o jornalista contemporâneo não vai para a rua. Agora, a internet domina a sua paisagem e todas as notícias estão em páginas de outros. A cópia sem recurso ao plágio está em voga. Os antepassados e antigos camaradas de profissão hão-de estar a rebolar nos túmulos.

Como se isto não bastasse, os jornalistas aguerridos estão em extinção. Aposta-se em painéis onde são os cidadãos a colocar questões aos políticos, a arranjar notícias, a fazer fotos e, se for preciso, a vender jornais. Os jornalistas não percebem que estão a hipotecar o seu próprio lugar, assumindo estupidamente que a sua função é facilmente substituível. Desenganem-se ou aceitem a responsabilidade: uma função destas não se substitui assim do pé para a mão. Um jornalista não é (só) um cidadão.

As redacções perdem cada vez mais os seus anciãos – são jornalistas caros de manter, dizem; são jornalistas que não se adaptam aos novos tempos, dizem. Esquecem-se, porém, que são os jornalistas mais velhos que conferem às redacções dois dos seus activos mais importantes: memória e experiência. As universidades não sabem ensinar tarimba, estaleca de redacção, que se aprende apenas com os jornalistas mais experimentados, com vivências de rua, caçadas de histórias e conversas até às duas da manhã sobre as maroscas que este ou aquele corrupto anda a cometer. Sem estes jornalistas, o jornal morre porque não se lembra do ontem, dia tão importante para o hoje. Os miúdos, mão de obra barata, quase gratuita, têm pouco conhecimento histórico, político e social do país onde vivem e, por isso, não podem (ou não devem) compôr metade de uma redacção. Sem se darem conta, estes aspirante tornam-se apenas replicadores de informação.

Mas a culpa não está apenas do lado dos jornalistas e dos investidores ou proprietários de órgãos de comunicação social; estes últimos pouco se importam com missões e idealismos em geral. Existe também um problema de público: o público precisa de ser educado. Em primeiro lugar, porque continua a acreditar que os jornalistas são os culpados das más novas, numa reedição da ideia pacóvia de que os mensageiros devem ser mortos quando as notícias não são agradáveis. É muito comum ouvir dizer que não se gosta de ver notícias porque só se vêem “coisas tristes”. Na minha modesta opinião, eis uma profunda estupidez. Seria realmente interessante que os jornalistas decidissem, por um só dia, e maquinal e oleadamente concertados, fazer uma greve, um pacto de silêncio. Seria no mínimo interessante observar o estado de desorientação em que o povo se haveria de achar.

Acontece que, em Portugal, falta uma verdadeira cultura mediática. Pensando no longo prazo, é impreterível que exista uma disciplina curricular de Cultura para os Media nos ensinos básico e secundário, desde o quinto ano ao décimo segundo. Precisamos de cidadãos mais exigentes, mais críticos, mais leitores, menos agarrados à superficialidade televisiva. Só assim poderemos pôr a classe política e económica na linha. Precisamos de cidadãos que procurem jornais nas bancas e que não se fiquem pelo Correio da Manhã na mesa do café, precisamos de cidadãos que saibam reconhecer os melhores jornais que são feitos, a muito custo, neste país – cidadãos que entendam que as vendas não são sinónimo de qualidade, antes pelo contrário. Uma larga fatia da população consome notícias através da televisão, sem imaginar sequer que os telejornais andam a reboque dos jornais. Não é por acaso que Tiziano Terzani dizia que a televisão só imita os jornalistas de imprensa. Precisamos ainda de cidadãos que ponham de lado a ideia (televisiva e desinformada) de que os jornalistas são podres de ricos e que só andam nisto pelo dinheiro.

Acima de tudo, é preciso lançar um debate sério e informado sobre os media em Portugal, fundamentalmente sobre a forma como se faz jornalismo, sob pena de perdermos qualquer critério e darmos de bandeja uma governação sossegada e sem escrutínio a quem tem a faca e o queijo na mão. Caso contrário, seremos autómatos eternos. Alguém disse um dia que a imprensa é o espelho no qual a sociedade pode ver as suas belezas e as suas verrugas. Seria importante que todo e qualquer cidadão tivesse consciência disto. Pelo caminho, talvez encontremos um modelo de negócio que funcione e que nos escravize menos.

Sugerir correcção
Comentar